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Ana Frazão, Gisela Sampaio da Cruz Guedes e Mariana Pargendler

O anteprojeto de reforma do Código Civil é adequado? NÃO

Enorme insegurança jurídica; não houve diagnóstico estudado e debatido sobre deficiências do atual regime

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Ana Frazão

Advogada, é professora de direito civil e comercial (UnB)

Gisela Sampaio da Cruz Guedes

Advogada, é professora de direito civil (Uerj)

Mariana Pargendler

Professora de direito dos negócios (FGV Direito SP); nomeada professora permanente da Harvard Law School (a partir de julho)

Se aprovada, a proposta de reforma do Código Civil trará, além de uma série de distorções decorrentes da introdução de soluções controversas e pouco testadas, grande insegurança jurídica, afetando diretamente a vida dos cidadãos, das empresas e do Estado, assim como comprometendo o desenvolvimento nacional.

O ambicioso projeto, concebido e implementado com pressa inusual e metodologia inadequada, tem por propósito modernizar o Código Civil (CC), alegadamente defasado diante dos avanços do século 21. Todavia, não houve diagnóstico estudado e debatido sobre as deficiências do atual regime, cuja proposta de reforma ainda ignora que o CC não nasceu velho, diante das centenas de emendas introduzidas ao seu anteprojeto, e foi desenhado como "sistema em construção", já concebido para se amoldar aos novos contextos econômicos e sociais.

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Plenário do Senado Federal - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Além disso, embora sempre sujeito a atualizações pontuais, tal como vem ocorrendo desde a sua promulgação, há pouco mais de 20 anos, o CC já foi alterado por cerca de 50 leis esparsas. A atual proposta, porém, vai mais longe: faz verdadeira tábula rasa de regime jurídico sólido, que é substituído por inovações perigosas que atingem quase mil dispositivos e ainda acrescenta outros.

Seria impossível tratar aqui do número considerável de retrocessos, incongruências e atecnias do anteprojeto. Como exemplo, vale mencionar o título da responsabilidade civil: embora tenha sido objeto de moção na 1ª Jornada de Direito Civil em 2003, que elogiou seu "notável avanço" e "progressos indiscutíveis", foi inteiramente reescrito em favor de dispositivos tecnicamente deficientes e danosos tanto à higidez quanto à previsibilidade do sistema.

Destacam-se, nesse sentido, o artigo 944-A, que, na reparação do dano extrapatrimonial, além de considerar o grau de ofensa ao bem jurídico (muitas vezes superior ao dano sofrido), com claro viés punitivo, permite ao julgador incluir uma sanção pecuniária punitiva, cujo valor ainda pode ser multiplicado por quatro; o artigo 944-B, por meio do qual o dano indireto, atual e futuro, passa a ser indenizável, conquanto não se saiba ao certo seu conceito e seus limites; e os artigos 927 a 929, que introduzem conceitos novos, como "atividade de risco especial", "situação de risco", "atividade não essencialmente perigosa" e "situação de perigo". Tais dispositivos trarão impactos não somente aos agentes privados mas também aos públicos, igualmente sujeitos ao regime de responsabilidade civil.

O anteprojeto também se afasta da premissa de que, como lei básica do direito civil, o CC precisa ter a estabilidade decorrente de soluções razoavelmente testadas. Não é a via adequada para tratar de questões novas e em transformação constante, sobretudo quando controversas, como é o caso do direito digital, que deveria ser objeto de lei específica. A proposta também desestabiliza o direito contratual ao alçar a função social do contrato —conceito altamente indeterminado— à causa de nulidade de cláusula contratual (art. 421, §2º).

Por fim, não houve nem mesmo o cuidado de se tentar estimar ou quantificar o grande impacto econômico que uma alteração dessa magnitude representará diante dos significativos custos que, especialmente governos e empresas, terão de suportar para se adaptarem às novas regras e a insegurança jurídica daí decorrente. Tais custos, aliás, serão suportados igualmente por todos os cidadãos e pelo próprio Poder Judiciário.

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