As campanhas eleitorais não são territórios livres. Há regras —e aqui no Brasil, a propósito, existe uma hiper-regulação da propaganda eleitoral. E a Justiça Eleitoral "vigia e controla" a regularidade das campanhas, mesmo que não seja provocada (age de ofício). É o chamado "poder de polícia", que só a Justiça Eleitoral tem.
O Código Eleitoral estabelece que o direito de propaganda não importa restrição ao poder de polícia dos juízes eleitorais (art. 249). Esse dispositivo, fonte original do poder de polícia, é da metade da década de 1960. É de um tempo, portanto, que nem mesmo os filmes de ficção científica poderiam sugerir a realidade da atual "era digital". As campanhas se apresentam em um novo ecossistema. Sendo assim, o "poder de polícia analógico" —do juiz que manda retirar o cavalete de campanha— é transmutado no "poder de polícia digital", controlando o que está na internet.
A legislação e as resoluções do TSE tinham mesmo que dar conta de entregar novas técnicas eficientes para o exercício do poder de polícia, especialmente porque é consenso que o nível de ofensa à lisura do processo eleitoral é radicalmente mais célere e amplo no ambiente digital. A União Europeia aprovou, em 2022, o "Digital Services Act" com o objetivo, também, de garantir um processo eleitoral seguro. É um movimento internacional. Deve haver limites, no entanto.
Desde a última eleição, o Tribunal Superior Eleitoral, a partir da presidência do ministro Alexandre de Moraes, promoveu alterações e aprovações de resoluções que ampliaram o poder de polícia para fora dos limites da campanha eleitoral. Criou-se um inédito "poder de polícia permanente"; na origem, esse poder se restringia ao período eleitoral.
Além disso, o Ministério Público teve atuação esvaziada. Os poderes foram concentrados no TSE, na presidência da corte, com o objetivo não mais apenas de impedir "campanhas irregulares", mas de garantir a integridade do processo eleitoral (resolução 23.714/2022). E o TSE ainda passou a exercer um controle direto em relação à atuação dos demais juízes eleitorais (art. 9º-F da resolução 23.610/2019). Houve um nítido autoempoderamento do TSE.
Ninguém duvida que o sistema brasileiro de votação e totalização de votos reclama proteção eficiente contra a desinformação, mas esse novo controle "permanente e concentrado" do TSE exige muita autocontenção para não descambar para o arbítrio. Esse pode ser o problema revelado a partir das últimas notícias. E o poder de polícia definitivamente não pode levar essa culpa.
A rigor, a dificuldade está nessa simbiose heterodoxa desse poder de polícia ampliado e concentrado com os inquéritos excepcionais, mas infinitos, do Supremo Tribunal federal. Como reconheceu o professor Aury Lopes Junior, as últimas notícias parecem revelar que houve uma grave violação do sistema acusatório, fulminando a imparcialidade do julgador que promove pedidos nitidamente enviesados de provas e relatórios para, mais na frente, ser o próprio juiz da decisão.
É necessário deixar o poder de polícia fora desse problema. Trata-se de função-atividade importante da Justiça Eleitoral, exercida por todos os juízes eleitorais, que não pode ser contaminada pelas conhecidas e reconhecidas ofensas ao devido processo legal no ambiente dos "inquéritos excepcionais" do Supremo.
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