Siga a folha

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Como contar uma vida gorda?

Série sobre Jô Soares ilustra os limites das produções da Globoplay

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Gustavo Alonso

Estreou nesta semana a série documental "Um Beijo do Gordo", sobre a trajetória do comediante Jô Soares. Com quatro episódios produzidos pelo núcleo de documentários da Globoplay, a série é mais uma das recentes produções que subestimam boas histórias em troca de bajular artistas.

Desde o início da década, a Globoplay vem se destacando em lançar obras biográficas de artistas famosos da cultura brasileira como Xuxa, Juliette, Sullivan e Massadas, Ayrton Senna, Tim Maia, Chitãozinho & Xororó e Galvão Bueno. Capitaneado por Pedro Bial, o núcleo documentarista da Globo produziu pérolas como "Vale O Escrito", sobre o jogo do bicho no Rio de Janeiro. E também alguns bons documentários biográficos como "A Mão do Eurico", sobre o cartola vascaíno, e "O Canto Livre de Nara Leão", sobre a cantora que fez história na música brasileira. Mas, afora essas honrosas exceções, perdura nos documentários produzidos pela Globoplay um viés de puxa-saquismo de famosos.

A série "Um Beijo do Gordo" tem direção artística de Antonia Prado e roteiro e direção de Renato Terra. Os diretores se dão bem na divisão dos quatro episódios. Embora o primeiro tenha ficado curto para abordar a vida de Jô do nascimento até 1988, os episódios seguintes conseguem justificar-se narrativamente.

O segundo episódio trata do sucesso do programa "Jô Soares Onze e Meia", que de 1988 a 1999 encantou as madrugadas brasileiras ao introduzir o formato do talk show no Brasil, transmitido pelo SBT. O terceiro episódio conta a volta de Jô para Globo em 2000 até a aposentadoria a contragosto em 2016 e sua morte em 2022. O quarto episódio, o mais interessante, narra a intimidade do apresentador que sempre foi bastante reservado.

Jô Soares em fotografia de Bob Wolfenson, que faz parte do livro "Bob Wolfenson: O Livro Falado", do Instituto Olga Kos

A divisão de capítulos na vida de um biografado é sempre uma escolha narrativa que demonstra sentidos subjacentes da obra. Em "Um Beijo do Gordo" fica claro no arco narrativo o tom de "volta do filho pródigo" à emissora do Jardim Botânico. Os atritos com a Globo são quase sempre relativizados. A ruptura entre a emissora e o humorista e sua consequente saída em 1988 são mostrados como mera luta de temperamentos entre Boni e Jô. Em troca da complacência na forma como a Globo é mostrada no documentário, Jô sai da série como um personagem santificado, sempre generoso e bondoso.

Alguns entrevistados parecem apenas legitimar a genialidade do humorista, e não fica claro o porquê de estarem no documentário. É o caso de Fernanda Montenegro, uma espécie de narradora no início do primeiro episódio —que depois desaparece sem muita explicação e sua filha Fernanda Torres, que nada tem a dizer além de elogiar Jô. Outros entrevistados foram subutilizados, como é o caso de Drauzio Varella, amigo pessoal do humorista. Drauzio merecia aparecer mais, quiçá tal qual a surpreendente participação da cantora Zélia Duncan.

Como a ambição era apenas homenagear Jô, o documentário perde a chance de propor uma reflexão mais densa sobre algumas questões importantes. Por exemplo, a evolução do humor. Será que a comédia de Jô ficou datada?

Jô fez parte da geração do humor na TV baseado em tipos e bordões, da qual ele e Chico Anysio foram os principais nomes. Alguns de seus personagens hoje talvez fossem cancelados, como o icônico Capitão Gay. Talvez também fosse o caso da personagem Dalva Mascarenhas, a feminista de bigode, Bocão, o dentista tarado, Atlas, o anão do bordão "só porque eu sou baixinho!", e o invasivo galanteador Décio, de quem ríamos inocentemente sem problematizar o atual "não é não".

Outra questão infelizmente não abordada na série é a gordofobia. As namoradas Claudia Raia e Flavia Pedras até confessam que no início da relação resistiram aos encantos do humorista por gordofobia, mas nada mais denso é aprofundado pelos documentaristas. Uma pena.

Apenas numa breve passagem vislumbra-se uma brecha do que poderia ser um filme menos chapa-branca. Quando Fábio Porchat narra sua estreia na TV aos 18 anos como um espectador metido do programa do Jô, parece até que uma face menos glamourizada do humorista irá aparecer. Porchat contou que, depois de se tornar famoso, ele foi entrevistado por um apresentador antipático e enciumado: "Aí começa uma das relações mais difíceis da minha vida: com o Jô. Foram 10 minutos que o Jô só me dava porrada. Eu falei: eu nunca mais vou voltar nesse programa. Para ser maltratado, não quero, não vou".

Porchat se reconciliou com Jô em 2016, quando este foi a seu talk show na TV Record. Mas o documentário é simplista na glorificação do humorista, sempre mostrado como generoso e clemente. Se Porchat conseguiu ser abençoado pelo padrinho, outros humoristas foram alvos de seu desprezo.

Foi o caso do humorista Márvio Lúcio, conhecido como Carioca, que imitava Jô Soares de forma hilária no Programa Pânico. Durante anos os comediantes do programa tentaram contato com Jô que nunca quis papo e ignorou solenemente o Pânico. A ponto de Carioca abandonar o personagem Jô Suado, descontente por não ser compreendido como uma homenagem ao mestre. Jô nunca entendeu as novas gerações do humor. Em sua egolatria, não via nada de novo no stand up e reagia muito mal quando era ironizado ou superado pelos mais jovens.

O caso de Carioca do Pânico não foi abordado em "O Beijo do Gordo". A fuga de polêmicas empobrece a qualidade artística da série. Se a Globo quer fazer mera propaganda de si mesma e de seus artistas era melhor reavivar o programa Vídeo Show.

A carreira brilhante de Jô ainda precisa ser analisada sem viés adulatório. O fim de sua carreira, em que sua egolatria ficou patente e inviabilizou o programa, precisa ser refletida de forma a se pensar a trajetória de artistas geniais e revolucionários, mas que reagem mal quando se veem ameaçados pela roda da história.

É preciso mais coragem e ambição nas narrativas biográficas, o que vem faltando às produções da Globoplay. A forma de se contar uma vida tem que estar à altura do acervo visual da maior rede de TV do Brasil.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas