Siga a folha

Descrição de chapéu
Guerra da Ucrânia Rússia

Guerra da Ucrânia fez do mundo um lugar mais perigoso em 2022

Incertezas geopolíticas e militares marcam futuro do maior conflito desde 1945 na Europa

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

Quando foi acordado por um telefonema dos pais às 6h do dia 24 de fevereiro, o jornalista moscovita Vladimir expressou todo o proverbial fatalismo russo. "A essa hora, só podia ser coisa ruim", conta. E era.

Seu xará ocupante do poder no Kremlin desde 9 de agosto de 1999 havia iniciado uma "operação militar especial" na Ucrânia, seja lá o que o termo significasse. "Era guerra, e nossa vida nunca mais seria a mesma", diz ele, que trabalha para um órgão estatal e pede para não ter o verdadeiro nome revelado.

Soldados russos no teatro de Mariupol, cidade estratégica conquistada após ser reduzida a ruínas - Alexander Nemenov - 12.abr.2022/AFP

Não que Vladimir não veja virtudes na ação de Putin, considerando que o Ocidente forçou os russos a agirem na Ucrânia ao não aceitar debater sua neutralidade. Pensam como ele 36% dos russos, segundo pesquisa do independente Centro Levada, realizada de 24 a 30 de novembro.

Vladimir, como personagens mais ilustres da tragédia como o presidente Joe Biden, achava que a guerra estaria resolvida em poucas semanas —em favor dos russos. Em março, o Levada apurou que 35% dos russos a viam se estender no máximo por seis meses. Hoje, passados dez meses de destruição e morte, esse índice caiu a 16%.

Com o fim do ano, algumas das facetas do maior conflito em território europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-45), que eclipsou os outros 32 pelo mundo contados pelo Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (Londres), são passíveis de escrutínio.

Guerra da Ucrânia fez do mundo um lugar mais perigoso em 2022

O mito da Rússia invencível

Por evidente, um país que tem prontas para uso 1.600 ogivas nucleares sempre será uma grande potência militar. Mas o ostensivo fracasso da uma guerra relâmpago que deixaria os ucranianos de joelhos, por falta de pessoal, inflexibilidade tática e erros grosseiros de logística, mostra que o temido poderio bélico reconstruído nas duas décadas de Putin no poder tem limites claros.

Obviamente, a resistência ucraniana pesou de forma decisiva, como a negativa do antes ridicularizado presidente Volodimir Zelenski em deixar o país pontua. Hoje, Kiev tem iniciativa.

Mas mais importante foram os erros de Moscou e a percepção de uma janela de oportunidade para o Ocidente, que passou a armar Kiev até os dentes —sempre de olho na linha vermelha estabelecida por Moscou para não ser envolvida na guerra em si, o que explica até aqui a ausência de fornecimento de aviação de combate.

O mito da Rússia derrotada

O problema da leitura dos erros russos é incorrer na ideia de que Putin já perdeu a guerra. Como nunca é claro acerca de seus objetivos, praticamente tudo é intuído no Ocidente acerca de seus desígnios. Os básicos são claros: neutralizar a Ucrânia, impedindo sua adesão ao arcabouço de estruturas rivais, como a Otan (aliança militar) e a União Europeia (clube político).

Chegar a algo parecido com isso é outra história. Como ocupar a Ucrânia é inviável, até porque o Ocidente transformou suas forças terrestres em uma das mais capazes em toda a Europa, Putin ainda tem meios de amputar partes do vizinho —ou engolir as que já considera suas, anexadas em setembro.

Não deverá ser com a atual campanha aérea contra a infraestrutura energética para quebrar o espírito ucraniano. O resultado pode ser o contrário, como os britânicos sob a Blitz nazista ou os norte-vietnamitas sob a chuva de fogo dos B-52s demonstraram. Mas ela pode ganhar tempo para o treino e emprego dos 320 mil reservistas convocados em outubro, talvez com algum reforço da aliada relutante Belarus.

Por outro lado, apesar de tudo, os russos seguem apoiando Putin (79% de aprovação, diz o Levada) e as Forças Armadas (74%). A elite, com elementos em guerra aberta entre si e claramente insatisfeita com sanções, não produziu ao fim um golpe de Estado como muitos políticos ocidentais sonhavam.

Em resumo, o jogo ainda está aberto e as vítimas de lado a lado vão sendo contadas. Os EUA estimam em 100 mil baixas (mortos e feridos) para cada beligerante, mais talvez 40 mil civis. Moscou e Kiev dão números baixos e inconfiáveis. Essa verdade só será conhecida bem depois que o último míssil cair.

Negociações de paz

Nem Moscou, nem Kiev estão verdadeiramente prontas para a paz porque seus termos são inconciliáveis a este ponto. Os EUA parecem ter recuado um pouco da ofensiva para que Zelenski abrisse a possibilidade de negociar com Putin, temendo serem vistos como maus aliados —se é que é possível dizer isso depois de despejarem mais de US$ 20 bilhões em armas para os ucranianos.

Mas há bases possíveis para conversa. Muito criticado por sugerir em maio que a paz deveria ser construída sobre as fronteiras estabelecidas antes da guerra, o que implicaria a cessão definitiva da Crimeia anexada em 2014 e de parte do leste russófono para Moscou, o papa da diplomacia americana Henry Kissinger avançou no tema em um artigo recente para a revista britânica The Spectator.

Ele sugere que a integração de Kiev com a Otan é inevitável, ainda que não precise ser formal. "A alternativa da neutralidade perdeu o sentido, em especial depois que a Suécia e a Finlândia aderiram à Otan", escreveu.

A essa concessão por Moscou, ele retoma os temas de maio, reforçando que não se deve "degradar o papel histórico da Rússia". "A busca pela paz e pela ordem tem dois componentes que são às vezes tratados como contraditórios: a procura por elementos de segurança e o requisito de atos de reconciliação. Se não obtivermos os dois, não conseguiremos nenhum deles", disse.

Novo normal?

A previsão de que a Rússia se curvaria às sanções ocidentais não se concretizou. O país está em dificuldades e o longo prazo é desafiador, mas seu PIB não irá cair na casa dos dois dígitos e a indústria energética com que financia boa parte de seu orçamento conseguiu sobreviver.

Moscou tornou-se um cemitério de vitrines ocidentais, é fato, mas a vida segue com relativa normalidade, mesmo entre aqueles que não compram a versão edulcorada da realidade da mídia estatal. A China e a Índia têm garantido a sobrevivência econômica do Kremlin ao comprar oceanos de petróleo e gás com desconto, mas substituir a Europa ora fechada não é processo simples ou rápido.

O grande teste será este inverno no hemisfério Norte e as capacidades de governos de subsidiar a indústria e da população de tolerar a alta dos preços energéticos. Diferentemente dos ucranianos, britânicos e franceses não têm sua terra invadida, e o continente tem pontos de fissura política. Nos EUA, os custos de uma guerra distante já são objeto de discussão.

Isso dito, até aqui demonstrou unidade e passou a gastar mais: segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha), em novembro pela primeira vez a UE ultrapassou os EUA em ajuda global aos ucranianos (52% a 48%).

O fator China

Se Putin busca ganhar tempo e pressionar a Europa sob a neve, fator central para os desenvolvimentos do primeiro semestre de 2023 é a posição de seu maior aliado, a China. Xi Jinping joga um jogo duplo: aprofunda a cooperação militar com Moscou e promete amizade eterna, mas expressa publicamente dúvidas sobre o rumo da guerra e tem buscado reaproximar-se de Biden.

Para o chinês, nenhuma ruptura com os EUA é desejável agora, num momento em que está entrando no limbo do abandono de sua política de Covid zero para enfrentar dificuldades econômicas e evitar revoltas populares.

Ao mesmo tempo, ele se beneficia dos negócios energéticos com Moscou. É um xadrez complexo, que envolve outros atores regionais como a Índia e até mesmo o Brasil, e há dúvidas se a dinâmica no campo de batalha não acelerará a política.

A Terceira Guerra Mundial

Um dos aspectos mais aterradores de ver uma potência nuclear invadir um país armado de forma convencional em pleno século 21 é a possibilidade de uma escalada atômica. O uso frequente da carta nuclear por Putin ao longo de toda a crise, inclusive antes de mandar seus soldados para o vizinho, reanimou o fantasma da Terceira Guerra Mundial.

Como o próprio russo já disse, seria estupidez política e militar usar uma bomba atômica contra a Ucrânia, não menos pelo enorme risco de isso atrair uma resposta da Otan e um conflito catastrófico. Mas o espectro segue no ar, como já alertou a ONU e Putin adora relembrar, e se há uma certeza após quase um ano de guerra, é de que o mundo se tornou um lugar ainda mais perigoso.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas