Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Descrição de chapéu China

Censura a 'Friends' e ênfase a masculinidade reforçam pauta de costumes na China

Pequim carrega tintas ao caracterizar decadência moral do Ocidente e se posiciona como guardião da moralidade

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Uma geração de chineses cresceu aprendendo inglês com a série "Friends", exibida na China no início dos anos 2000 com enorme sucesso. No ano passado, quando ela foi novamente disponibilizada via streaming, os fãs mais atentos foram surpreendidos com cortes de cenas que remetiam a assuntos LGBTQIA+ —e que haviam sido exibidas integralmente no passado.

O exemplo ilustra a importância crescente da pauta de costumes para o Estado-partido no país. Muito se fala da participação cada vez maior do Estado na economia, mas é também mais visível o esforço das autoridades na promoção de determinados valores na sociedade.

Estudantes em aula de educação física de escola em Hefei, na China - Zhou Mu - 11.ago.22/Xinhua

Nos últimos anos, celebridades "moralmente corruptas", no léxico das autoridades, têm saído de cena. Em 2021, orientações sobre comportamento de artistas foram oficialmente adotadas para garantir que eles "observem moralidade social" e "promovam o prestígio da cultura chinesa". Influenciadores e celebridades foram punidos pelo "impacto social negativo".

Não por acaso, um dos grandes sucessos recentes da internet chinesa é Li Ziqi, que postava vídeos de sua vida bucólica no interior da província de Sichuan, colhendo caquis, preparando chá ou cozinhando comida típica da região.

Mais, o governo determinou que "homens afeminados" tivessem menos exposição na mídia. O K-pop coreano, por exemplo, vai cedendo espaço a estéticas mais alinhadas aos padrões da heteronormatividade valorizada pelo partido. Com o objetivo declarado de "cultivar a masculinidade" dos garotos, as autoridades decidiram, em 2021, promover mais educação física nas escolas.

A agenda conservadora nos costumes se combina à promoção do nacionalismo e à ideia de país forte. A produção cultural recente do país alinha-se a esse padrão. Enorme sucesso de bilheteria no ano passado, "A Batalha do Lago Changjin" exalta a bravura dos soldados chineses na Guerra da Coreia.

No WeChat, uma versão local turbinada do WhatApp, grupos LGBT foram fechados. Referências ao movimento #metoo foram controladas nas redes. Se a ideia de sociedade civil organizada já é vista com grande suspeição no Partido Comunista, a mobilização em torno de temas como esses soma-se ao incômodo.

Chama a atenção que no Politburo recém-anunciado não há uma única mulher entre os 24 membros. Nos últimos 20 anos, sempre houve uma no grupo que, curiosamente, tinha 25 assentos e passou a ter um a menos agora. Mas não se abriu espaço para uma mulher.

Na China, diferentemente de outras partes, a agenda de costumes não tem base religiosa —é concebida e liderada pelo partido. Apesar de não contar com um fundamento religioso, ela vinga no substrato confucionista do país. O regime atua para reforçar os papéis tradicionais dentro da sociedade chinesa, o que se encaixa bem na lógica de Confúcio.

Parece haver, no comando, a visão de que espaço excessivo para diferenças pode esgarçar o tecido social, comprometer a coesão do país, corromper a sociedade. Isso, claro, coloca em risco a estabilidade e a harmonia social, o que o PC tanto valoriza.

A preocupação com "poluição espiritual", expressão usada por segmentos conservadores no passado, existiu desde o início do período de abertura econômica. Havia o temor de que, com esse processo, a sociedade se tornasse muito permeável a valores importados.

Passados mais de 40 anos do início do processo de abertura e reforma, o partido carrega as tintas ao caracterizar a decadência moral de certas sociedades no exterior e se posiciona como guardião necessário da moralidade no país. "Friends" ou K-pop saem de cena, o momento é de boas moças e heróis —chineses, é claro.

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