Semanas antes do Natal, bandejas de cerejas importadas começam a ganhar espaços chamativos nos corredores de supermercados. Mas, em vez dessas frutas, a confeiteira Joyce Galvão usa grumixama para fazer a decoração da ceia e cereja-do-rio-grande para servir no topo do manjar de coco.
Ao compartilhar pequenas histórias pessoais em "Ingredientes para uma Confeitaria Brasileira", a autora diminui a distância entre o leitor e 42 produtos nacionais.
Depois de folhear o livro, dividido em cinco seções (frutas, farinhas e cereais, para adoçar, especiarias e frutos secos), fica difícil não querer experimentar itens como a pitangatuba, uma fruta endêmica da Mata Atlântica, que já foi abundante em uma faixa que vai do Espírito Santo ao Rio de Janeiro, e tem polpa carnuda, suculenta, perfumada e agridoce.
Provocar interesse é um empurrão da confeiteira para que a oferta de ingredientes nacionais como esses, que depende da demanda de consumidores, um dia seja tão viável quanto a de cerejas chilenas —ainda que exista um longo caminho a trilhar, que passa pelo apoio de institutos de pesquisa e por melhoramento genético, por exemplo.
A ideia aproxima a confeitaria de um discurso que chefs estrelados vêm sedimentando em seus restaurantes: o de empregar insumos locais.
Entre nossos vizinhos sul-americanos, o chef Virgilio Martínez, do restaurante Central, no Peru, fundou o Mater Iniciativa, um centro de resgate de ingredientes e preparos em sua região. No Brasil, Alex Atala, do D.O.M. e do instituto Atá, ajudou a atrair atenção para méis de abelhas nativas, entre outros alimentos.
Joyce Galvão também tem experiência nessa seara: trabalhou na Fundación Alícia, centro de pesquisa e inovação liderado por Ferran Adrià, um dos chefs mais influentes da atualidade, e com o chef Jordi Roca, responsável pelas sobremesas do restaurante El Celler de Can Roca, na Espanha.
Formada em gastronomia e em engenharia de alimentos, Galvão também é autora de "A Química dos Bolos" (Companhia de Mesa, 288 págs.).
Mas a experiência em cozinha, a conexão com produtos e o domínio técnico não ofuscam a escrita da confeiteira, que consegue transmitir conhecimento de forma acessível e com histórias saborosas.
Por exemplo, depois de ler o livro, você não cometeria o mesmo erro da chef, que comprou lindos jenipapos firmes e verdes na feira com a intenção de conhecer melhor o ingrediente. Correu para a cozinha só para descobrir que o produto, antes de amadurecer, é amargo e sem aroma —neste estado, serve apenas como corante azul-índigo. Isso acontece, aprendemos na leitura, graças à genipina, substância que, em contato com proteína, oxigênio e calor forma o geniposídeo, pigmento que vai do violeta ao azul-escuro.
O leitor também será advertido de que excesso de cumaru pode dar às suas sobremesas um gosto de sabão. O ingrediente, que tem origem amazônica e sabor adocicado, já era usado por Joyce Galvão na Espanha uma década atrás, época em que no Brasil estava restrito à indústria cosmética.
A cumarina, princípio encontrado nesta semente, também está presente na baunilha —o que, explica a autora, faz com que muitas pessoas substituam uma pela outra. Para usar, ela recomenda repousar três sementes em um litro de leite por um dia e, então, empregar o líquido para perfumar receitas como pudim.
As recomendações sobre como escolher, preparar e congelar ingredientes brasileiros estão por todos os capítulos. Mas não há receitas propriamente ditas.
E existe uma certa coragem em publicar um livro sobre comida que não resvale necessariamente no passo a passo para preparar alimentos. Receitas são uma boa forma de contar uma história --mas não a única dentro da gastronomia.
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