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  25 de agosto
  Memória agridoce
 

É fácil vasculhar, na "gaveta dos guardados", lembranças geralmente boas (quando não se trata da fome) relacionadas à comida. Lembranças sempre tocam os sentidos, como "aquela nossa música", o primeiro beijo, um grande fora, uma mentira deferida por justa causa, a primeira dança, uma especial transa, uma vitória, um desleixo, uma empada de palmito, um café coado no pano...
Quem não tem no palato uma preferência consequente da memória gustativa, que marcou história nas nossas histórias?
Abstraindo os estereótipos da infância, apresentados em formato de maçã do amor, pipoca-doce, balas Juquinha ou Eskibon na caixinha: falo de lembranças de comidas que fazem salivar e que não ousamos reproduzi-las por próprio punho, pois nos foram dadas de presente, feitas por alguma alma generosa que gostava de agradar cozinhando, a maneira mais discreta e dirigida de se demonstrar afeto.
Em enquetes do gênero, sempre sobressaem aqueles pudins de leite especiais, vindos da cozinha da mãe do amigo, da avó ou daquele restaurante que já se transformou em casa lotérica; aquele cachorro quente com tudo a que se tinha direito, preparado no carrinho de um senhor que talvez atendesse pelo nome de Antenor; ou aquele pastel de palmito daquela feira que hoje dá espaço ao sacolão.
Histórias gastronomicamente inesquecíveis borbulham ou pipocam com fartura quando a pauta é essa.
Entre variedades do gênero, ouvi as lembranças de um homem de quarenta anos que, aos doze, estudante do colégio São Luis, planejou, como se concebesse uma estratégia criminosa, juntar seus trocados por tempo estipulado. Quando a segurança e determinação se somaram à quantia necessária, o menino imbuiu-se de coragem, arrumou a camisa para dentro da calça do uniforme, passou um pente no cabelo e organizou o material na mala (naquele tempo não se usava mochila). Atravessou a avenida Paulista, entrou no Conjunto Nacional e dirigiu-se direto ao Restaurante Fasano. Sentou-se numa mesa há muito tempo visada e pediu ao garçom o misto quente com que há tanto tempo sonhava. O sanduíche do deleite consistia em fatias de pão de fôrma ligeiramente tostadas que, dispostas em sobreposição umas às outras, abrigavam entre as camadas presunto e queijo, este nem frio nem quente, na temperatura e consistência certa. Esse era o seu sonho de consumo.
Sonhos deste tipo nem sempre se tornam reais. O até que enfim hoje reverenciado Nelson Rodrigues, na juventude, contava um episódio triste da sua rotina de garoto pobre. Pegava diariamente o bonde no Rio e, também diariamente, via um moço abocanhar um sanduíche de ovo frito que, quando mordido, fazia a gema se derramar pelo canto da boca. Essa se tornou a meta obstinada de Nelson, e daí surgiu a expressão "babar um ovo". Nelson Rodrigues "babava um ovo" por um dia poder morder aquela iguaria.
Pedro Nava, no seu livro "Baú de Ossos", também revela lembranças: "Mas lembro-me bem da mesa de minha avó materna, em Juiz de Fora, onde a Inhá Luíza, da cabeceira, podia olhar a ponta dos meninos e das compoteiras, de que havia, ao jantar, umas quatro ou cinco repletas de doces. Menos, era penúria. E que doces..."
Frase manjada dizer "os tempos mudaram", mas será que os acetos balsâmicos, as flores comestíveis, os tomates secos e o arroz selvagem vão impregnar a alma dos nossos filhos?

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11/08/2000 -
Panela velha, comida boa
04/08/2000 - Tiragostos em Tiradentes
28/07/2000 - É Massa

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