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Como games se consagraram na literatura com best-seller sobre ascensão de gênios

'Amanhã, Amanhã, e Ainda Outro Amanhã' usa Shakespeare e Homero para filosofar sobre aventuras virtuais

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Obra da artista Gerty Saruê Divulgação

São Paulo

"Eu revivo aquele dia sem parar", desabafa um designer de games a sua chefe sobre um episódio traumático recente. "Queria poder ter salvado ele. Se não tivesse descido as escadas. Se eu não tivesse deixado ele ir para o lobby."

"Isso é o jogador em você tentando descobrir como você poderia ter vencido essa fase", interrompe ela. "Mas não havia nada que você pudesse ter feito. Não era possível vencer o jogo."

A cena é o rescaldo de um momento fatal na história de "Amanhã, Amanhã, e Ainda Outro Amanhã", romance que vem colhendo repercussão sem precedentes ao abordar o universo dos videogames com requinte literário.

Chave para o sucesso da trama da americana Gabrielle Zevin, autora de 45 anos que cresceu jogando desde a adolescência, é abordar esse mundo de forma desarmada de preconceitos, procurando entender o que leva tanta gente a se enfurnar em realidades virtuais —só nos Estados Unidos, ela estima, são cerca de 50 milhões de gamers.

mulher de traços orientais sorri em foto em preto e branco
A escritora best-seller Gabrielle Zevin, autora de 'Amanhã, Amanhã e Ainda Outro Amanhã' - Hans Canosa/Divulgação

"Para mim a questão era: como jogar videogames durante toda a sua vida afeta sua relação com o mundo, com a mortalidade, com as outras pessoas?", afirma uma escritora que viu sua obra virar best-seller trazendo a ascensão de dois amigos com habilidade excepcional para criar esse tipo de tecnologia —ou, melhor dizendo, de arte.

Eles são Sam, um garoto asiático-americano marcado por uma atrocidade que o deixou órfão e irreversivelmente ferido, e Sadie, sua melhor e mais brilhante amiga, que se vê obscurecida numa indústria machista que, por muito tempo, não soube como tratar as mulheres.

"Os dois personagens são atraídos pela ideia de escapar da morte", comenta Zevin nesta entrevista por Zoom. "Negar a inevitabilidade da morte é parte da vida. E isso é parte dos videogames também."

Os leitores são apresentados a Sam no hospital, quando o garoto diz que a única coisa que o impedia de desejar o suicídio era que podia deixar seu corpo e estar em outro por um breve tempo, com problemas que não eram os dele. "Eu podia salvar a princesa mesmo quando mal conseguia sair da cama."

O repórter comenta que o livro reforça uma impressão disseminada de que profissionais da área são misantropos, pessoas quebradas buscando se refugiar em mundos virtuais. "Ah, mas isso são artistas em geral", interrompe ela, rindo.

Isso vem de uma escritora formada em literatura na Universidade Harvard, hábil em misturar temas pop com arte sofisticada em uma trama envolvente que se ancora em referências que vão de Homero a Emily Dickinson. O título, aliás, vem de Shakespeare.

"Amanhã, amanhã e ainda outro amanhã arrastam-se nessa passada trivial do dia para a noite, da noite para o dia até a última sílaba do registro dos tempos", recita o discurso mais famoso de "Macbeth", que termina dizendo que a vida "é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada".

Um personagem comenta, logo depois, que isso serve para definir os games e sua "possibilidade de renascimento infinito". "Nenhuma perda é permanente, porque nada é permanente, nunca."

Essas reflexões de verniz filosófico, tiradas das páginas mais nobres da literatura, são citadas no mesmo fôlego de títulos como "Metal Gear Solid", "Super Mario Bros" e "Sim City".

É evidência de um movimento recente, reforçado pelo romance de Zevin, que tira o estigma dos games como um passatempo banal, destituído de profundidade —o mais novo ápice é a adaptação de "The Last of Us", projeto que veio dos consoles e rendeu a série mais elogiada do ano até agora nas mãos da HBO.

Zevin afirma que esse é um dos jogos que mais a arrebataram, demonstrando como os games poderiam ser grandiosos. A escritora brinca que, até ano passado, tinha que explicar às pessoas do que se tratava quando o mencionava em entrevistas, mas agora soa até como um clichê.

"Eu dizia que era como se ‘A Estrada’ de Cormac McCarthy e ‘Estação Onze’ de Emily St. John Mandel se unissem para formar um jogo", lembra, citando dois dos romances distópicos mais celebrados do século.

Não é de hoje que vemos jogos serem comparados a bons livros, ainda que as experiências sejam bastante distintas. Mesmo assim, a literatura continua a desprezar videogames, segundo Zevin, que afirma nunca ter lido nada que abordasse esse tema com estofo.

A autora não busca fazer uma defesa enfática dos jogos como um suprassumo cultural, mas demonstrar que eles já fazem parte da vida de algumas gerações, como um tipo de entretenimento fundamentalmente calcado nos avanços tecnológicos.

"A possibilidade do que os games poderiam se tornar sempre me fascinou. Se você comparar os jogos dos anos 1980, como aquele pingue-pongue que era só dois tracinhos e uma bolinha, com os jogos em 2012, que já eram como filmes —isso aconteceu tão rápido, na duração da minha vida."

Esse é o período que Zevin cobre no livro, acompanhando com deslumbramento meticuloso todas essas evoluções.

No começo, explora uma universidade habitada por programadores, em que Sadie é a única mulher. Ela se envolve com um superstar da indústria gamer, que gosta de algemá-la na cama e tomar crédito por seu trabalho —o tipo de figura pedante que a autora se diverte dizendo que brilhava naquela época, mas hoje não mais.

E termina com a própria Sadie dando aula na mesma faculdade, com metade das alunas do sexo feminino e aquele professor afastado. Afinal, no mundo dos games, não foi só a tecnologia que evoluiu.

Amanhã, Amanhã, e Ainda Outro Amanhã

  • Preço R$ 74,90 (400 págs.); R$ 37,90 (ebook)
  • Autoria Gabrielle Zevin
  • Editora Rocco
  • Tradução Carol Christo
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