Em 1973, Geraldo Sarno dirigiu pela primeira vez um filme de ficção, com produção de Thomaz Farkas: "O Picapau Amarelo". O filme não foi bem recebido, talvez porque Sarno e Farkas fossem especialistas, até então, em documentários. Mas como seria revê-lo, para os que o viram então? E como seria vê-lo pela primeira vez, 50 anos depois?
Nesse meio tempo, entre outras, Monteiro Lobato passou de maior escritor infantil brasileiro a ser discutido como um infame racista. E Sarno fez outras incursões importantes no campo ficcional. Como avaliar ou reavaliar seu primeiro trabalho?
"O Anjo Loiro", ao contrário, fez barulho. O segundo filme de Alfredo Sternheim, um dos primeiros a lançar Vera Fischer, o anjo da história, como atriz, transpunha o clássico "O Anjo Azul", que lançara Marlene Dietrich em 1931. Como será revisto em 2023? E a "Super Fêmea", de Anibal Massaini, que fez fortuna usando a fama —e o corpo, claro— da ex-miss Brasil?
Cada filme da mostra "1973 – 50 Anos Depois", na Cinemateca Brasileira, pode ter uma história semelhante. São no total 40 filmes, sendo 18 estrangeiros e 22 brasileiros —o que inclui quatro curtas— selecionados pelo curador Paulo Sacramento, menos com o objetivo de buscar "os melhores" do ano do que oferecer uma amostra das diversas maneiras de produzir e entender o cinema na época.
No setor brasileiro, ninguém deve esperar uma obra-prima de "A Virgem e o Machão". Seu diretor, J. Avelar, não é outro senão José Mojica Marins, impedido pela censura da época de fazer filmes de seu Zé do Caixão. Mas Mojica é sempre Mojica e, apesar do deslocamento, pode-se esperar um filme surpreendentemente vivo.
Em um momento em que os filmes populares brasileiros já começavam a se afirmar, duas mulheres surgiam na direção: Teresa Trautman, com o ousado "Os Homens que Eu Tive" e Lenita Perroy com "Mestiça".
Entre as comédias, nenhuma se destacou mais que "Vai Trabalhar, Vagabundo, de Hugo Carvana. A sexualidade já era uma questão que chegava às camadas populares de espectadores, como atesta "Sob o Domínio do Sexo", de Tony Vieira. Mas também já se aproveitavam as rebarbas do faroeste spaghetti, como atesta "Trindad É Meu Nome", de Edward Freund.
O setor estrangeiro sugere encontros ou reencontros com obras-primas até hoje incontestáveis, como o espanhol "O Espírito da Colmeia", de Victor Erice, ou, um pouco menor, o "Ana e os Lobos", de Carlos Saura.
Outros filmes darão lugar a revisões. Afinal, "O Exorcista", de William Friedkin, continua sendo a maravilha de horror que aterrorizou as pessoas em 1973? E "Caminhos Perigosos", que —com modéstia— abriu passagem para Martin Scorsese se afirmar como um dos grandes de sua geração?
George Roy Hill não teve a mesma sorte. Embora "Golpe de Mestre" tenha sido saudado como uma grande comédia de seu tempo e lhe valido o Oscar de melhor direção, o conjunto de sua carreira não chegou a produzir uma obra regular ou um olhar pessoal.
Talvez seja importante notar que, no setor externo, observava-se um mundo em plena crise —com a guerra no Vietnã dando as cores. Filmes como "O Exorcista", "Caminhos Perigosos", "Golpe de Mestre", respondem, de maneiras diferentes, a essa crise nos Estados Unidos.
Na Europa, a Espanha de Erice e Saura é um país que ainda trata as feridas da Guerra Civil e já anuncia o fim da ditadura franquista.
Mas "A Comilança", de Marco Ferreri, não daria conta de um mal-estar que também assola a Europa? Ressurgindo depois de alguns projetos fracassados, Orson Welles questionava o ilusionismo cinematográfico em "É Tudo Verdade".
Já François Truffaut o punha em destaque e de certo modo fazia do cinema uma espécie de oásis liberto dos problemas do mundo. Uma briga violenta provocada por Jean-Luc Godard a propósito deste filme separaria até a morte dos amigos inseparáveis dos tempos da nouvelle vague. Já "Amarcord" será ainda outra manifestação do "universo felliniano" de memória e fantasia.
Certamente não são apenas esses os filmes interessantes de uma programação que segue de 26 de julho a 6 de agosto, com filmes de quarta a domingo.
Convém, no entanto, chamar a atenção para o curta "A Alma do Olho", de Zozimo Bulbul, surpreendente e talvez pioneira manifestação do cinema negro no Brasil, realizado pelo importante ator, que será exibido numa sessão de curtas com trabalhos, também, de Ugo Giorgetti, Jairo Ferreira e Antonio Manuel.
É de notar que, nos filmes brasileiros, a política é sempre, no máximo, uma presença lateral. 1973 foi um desses anos de ouro da ditadura brasileira, com censura, tortura, repressão em geral dando o tom.
A sala de cinema não deixava de ser um bom modo de escapar do chumbo grosso dessa era. A sala da Cinemateca não deixará de ser um bom lugar para exorcizá-la com a mesma veemência como o exorcista de Friedkin expulsa seus demônios.
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