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Claudio Leal

O pior de 'Barbie' é que ninguém se espanta mais com o domínio cultural

A colonização corre em termos abstratos enquanto o marketing, que leva milhões ao cinema, asfixia produções brasileiras

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

São Paulo

A crítica da colonização cultural pode soar defasada nesses dias em que o domínio do mercado brasileiro pela indústria do cinema americano se normalizou e assumiu a feição amável do fenômeno "Barbie", de Greta Gerwig.

O marketing de apelo kitsch da Mattel e o vínculo afetivo com o brinquedo infantil impulsionaram o terceiro melhor desempenho em uma estreia no Brasil, com 4,1 milhões de pessoas entre quinta-feira e domingo desta semana. Só foi superado pelos transatlânticos "Vingadores: Ultimato", de 2019, com 5,5 milhões de pagantes, e "Homem-Aranha: Sem Volta para Casa", de 2021, com 4,5 milhões.

Margot Robbie em cena do filme "Barbie", dirigido por Greta Gerwig
Margot Robbie em cena do filme 'Barbie', dirigido por Greta Gerwig - Divulgação

Na Folha, lemos que "Barbie" ocupa 2.056 salas de 767 cinemas; "Oppenheimer", de Christopher Nolan, 710 salas de 511 casas. Segundo a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, até o fim do ano passado o país tinha 3.401 salas.

Sem o equilíbrio da cota de tela, os dois longas ocupam juntos mais de 80% dos espaços. Sem contar outros gigantes em cartaz. Esses dados revelam uma concentração escandalosa e um cenário de colonização do imaginário.

No fenômeno "Barbie", boa parte da crítica se surpreendeu com os méritos estéticos e o ingrediente das questões de gênero. Por ora, segue tímido o debate sobre os efeitos mentais e econômicos do avanço desregulado da indústria multinacional de cinema, uma anomalia abafada por acadêmicos, críticos, políticos e cineastas mais atentos às contribuições dos blockbusters à arte do filme.

De saída, as greves de atores e roteiristas de Hollywood invalidam a ideia ingênua de que o sistema industrial estimula um pensamento avançado, ainda que róseo, na superação de desigualdades de qualquer ordem.

A incorporação calculada de pautas identitárias e dos melhores talentos do cinema independente não suprime a cadeia de trabalho depreciado, concentração de renda, controle de mercados periféricos e sujeição da obra de arte à publicidade. Como acréscimo, a inteligência artificial promete aprofundar a exploração da personalidade dos atores com tecnologias de ponta.

A crítica ao pendor imperial de Hollywood não inviabiliza o reconhecimento de suas inovações formais. Além do reconhecimento de mestres como John Ford e Alfred Hitchcock, o imaginário dos filmes americanos influenciou as vanguardas do século 20.

A dimensão mítica da indústria convive, porém, com o cerco dramático à diversidade das criações nacionais em países consumidores. Durante muitos anos foi fácil encarnar o diabo na figura do lobista Harry Stone, o representante no Brasil da Motion Picture Association of America, a associação dos principais estúdios de cinema de Hollywood, entre eles Warner, Fox e MGM. Inimigo da cota de tela, Stone era o dragão da maldade contra o santo guerreiro do cinema novo.

Nos dias correntes, a colonização transcorre em termos mais abstratos, numa atmosfera de normalidade. A crítica ao capitalismo perdeu força nos filmes e nos discursos extrafímilcos da maioria dos cineastas em atividade.

A tradição de pensadores robustos do subdesenvolvimento envolve Paulo Emílio Sales Gomes, Glauber Rocha e Ismail Xavier, mas esse manancial crítico adormece na irrelevância pública das discussões sobre a dimensão socioeconômica dos filmes e a alienação e letargia da esquerda diante do colonialismo high-tech.

Nas últimas décadas, houve um avanço no reconhecimento da qualidade técnica de nossos filmes pelos espectadores, mas o quadro colonial oscila sem se abalar.

Os críticos da monocultura industrial são fixados, com frequência, no espectro do nacionalismo, mas essa armadilha precisa ser denunciada no enfrentamento da colonização cultural. E não deve ser temida, pois os nossos principais movimentos artísticos absorveram programas antinacionalistas.

A bossa nova, o cinema novo, a tropicália e o cinema marginal contribuíram para a emancipação simbólica do país sem renunciar à influência estrangeira e, sobretudo na música, sem se negar a conflitos dentro da indústria cultural. O hip-hop também exibe suas conquistas. Mas cabe questionar se o estágio de libertação antropofágica do cinema se encontra agora em processo de recuo.

Os blockbusters devolvem espectadores às salas esvaziadas pela pandemia, mas, ao as ocupar sem freios, oprimem a vida comercial do filme brasileiro, à margem da margem na própria sociedade que julga refletir e representar.

Sem condições de competir no marketing, o cineasta brasileiro enfrenta a asfixia econômica e a inexpressividade do debate crítico de suas obras. Esse lugar de inferioridade se repete ainda no confronto com filmes europeus independentes.

Aos realizadores nacionais resta a frustração com a aparente inutilidade de seus esforços. Os editais do estado atendem à realidade física do filme, mas não revertem a sua trajetória fantasmagórica, nem os privilégios de grandes produtoras e distribuidoras.

Outro sintoma da colonização cultural atinge a crítica e o jornalismo, que, para responder ao público imantado pela indústria do entretenimento, passam a discutir mais a realidade estrangeira que não alcançam do que a pensar as imagens de um país estranho à sua frente. O advento do streaming sugere uma piora nesse domínio de imaginários.

A inconsciência da desigualdade faz com que militantes celebrem ganhos para o debate de gênero em blockbusters que contribuem para reduzir a vida comercial de obras de diretoras como Anna Muylaert, Sandra Kogut, Helena Solberg, Paula Gaitán, Grace Passô, Lô Politi, Petra Costa, Ana Carolina, Juliana Rojas, Helena Ignez, Gabriela Amaral Almeida, Viviane Ferreira, Laís Bodanzky, Tata Amaral, Júlia Murat, Carolina Markowicz, Eliane Caffé, Monique Gardenberg, entre outras a filmar sob a luz tropical.

Esse desarranjo afetou ainda o acesso dos espectadores à poética independente de cineastas estrangeiras como Agnès Varda, Chantal Akerman e Claire Denis.

As exceções são sitiadas. Com poucos recursos financeiros, a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro oferece um contraponto a esse quadro colonial, com a melhor programação de instituições do gênero no país, insistindo no pensamento sobre o cinema brasileiro.

Num paradoxo dos algoritmos, este artigo não escapa à dinâmica frágil de nossa cinematografia. Pode engrossar o caldo crítico de "Barbie" e "Oppenheimer", ainda que deseje denunciar seus efeitos mentais e econômicos desastrosos.

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