Nunca me acostumei à TV, disse Migliaccio em entrevista

Ator, morto neste mês, afirmou que só representou de verdade com seus amigos no Teatro de Arena

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Paula Autran Sara Mello Neiva

[RESUMO] Morto em 4 de maio, Flávio Migliaccio lembra sua carreira em entrevista realizada em 2015 e afirma que sua maior saudade era subir aos palcos com seus amigos do Teatro de Arena, pilar da sua formação, que ele diz ter trocado pela televisão por falta de dinheiro.

Como parte da minha pesquisa de doutorado, fiz uma entrevista, junto com a pesquisadora Sara Mello Neiva, com Flávio Migliaccio, no Rio de Janeiro, em julho de 2015. Foi em um final de tarde, com o sol caindo na praia da Urca, que ele nos contou a história de quando quase se afogou em Copacabana, logo que chegou ao Rio de Janeiro na década de 1960, como integrante do Teatro de Arena: “Eu não sabia nadar, e minha vida passou diante dos meus olhos em um segundo... mas ainda estou aqui”. No dia 4 de maio, Flávio se foi aos 85 anos.

Mais do que apenas um dos grandes atores do teatro moderno nacional da década de 1950, ele foi o ator paradigmático dessa época, que inaugurou uma nova maneira de atuação brasileira. No entanto, segundo ele, isso se deu sem sua consciência do processo. “O [Augusto] Boal falava que era para sermos naturais, que devíamos evitar a empostação, mas eu já era assim, já falava daquele jeito”, diverte-se, falando do diretor do Teatro de Arena.

“Enquanto para os outros que já estudavam era difícil, para mim era algo muito simples. Eu venho do Tucuruvi... pus meu corpo e minha voz no palco e tudo aquilo aconteceu.”

Flávio Migliaccio
O ator Flávio Migliaccio - Raquel Cunha/TV Globo

“Tudo aquilo” foi a renovação da forma de se representar no país. O Teatro de Arena, com sua pequena compleição, já exigia uma representação menor, mais realista. “O público ficava a menos de um metro de nós, não dava para falar muito alto, né?”

Boa praça, muito reconhecido nas ruas devido a um de seus últimos personagens na televisão, o seu Chalita, da série da Globo "Tapas e Beijos", Flávio se emocionou muitas vezes durante a entrevista. Mostrou-se surpreso por haver ainda interesse por essa época tão distante da sua vida. “Não me acostumo com o jeito de se representar na televisão. Vim do Arena”, afirmou, mesmo que já estivesse na televisão havia mais de 40 anos —o mesmo tempo de sua saída do Arena por causa, segundo ele, da fome. “O teatro era um sucesso de crítica, mas vivíamos famintos.”

Depois da escolher ganhar dinheiro na televisão, Flávio fez cinema, teatro, escreveu peças, viajou o Brasil a trabalho, mas nos confessou, emocionado, que o que mais sentia falta era de subir aos palcos com seus amigos da época. “Vivíamos ali 24 horas por dia, foi muito intenso, valeu uma vida.” Leia a seguir os melhores trechos dessa conversa.

Como você, que veio de uma família humilde, sem contato com as artes, acabou indo fazer teatro? Comecei fazendo teatro amador na igreja. Fiquei três anos em um seminário, mas fui expulso, aos 17 anos. Fiquei triste e passei a ir à igreja tentar reencontrar Deus. Não o achei, mas um dia ouvi um barulho nos fundos da igreja, segui o som e me vi em um teatrinho que existia ali. E assim assisti a uma peça pela primeira vez, senti como se fosse a minha família contando histórias. Fiquei entusiasmado e, quando terminou, falei para o ator principal: “Sou capaz de fazer isso”. Ele falou: “Então faz, pelo amor de Deus, que eu não aguento mais esse troço!” [risos]. Fui fazer o espetáculo e em um ano passei a dirigir e escrever as peças. No lugar de Deus, encontrei o teatro.

E como se deu a passagem da igreja para os principais grupos de teatro do país? Eu morava em São Paulo, no Tucuruvi, bairro afastado do centro. Não tinha muita coisa lá, mas um dia acompanhei um colega da igreja em um teste de um curso de teatro do grande diretor italiano Ruggero Jacobbi e de sua mulher, Carla Civelli. Ela perguntou se eu não ia fazer o teste, e eu disse que não, porque na parte teórica eu era zero. Ela falou: “Então, vem, porque a parte teórica foi atender o telefone” [risos]. Eu passei e fiz o curso de um ano. Aí o Ruggero me apresentou a um grupo amador, o Teatro Paulista do Estudante (TPE). Em plena avenida Paulista, estavam o Vianinha [Oduvaldo Vianna Filho], o [Gianfrancesco] Guarnieri e a Vera Gertel pedindo dinheiro para fazer um espetáculo. Eu os ajudei e assim entrei para o TPE. O Ruggero atravessou a rua e deu adeus para mim. Nunca mais o vi, mas ele marcou a minha vida e a de muita gente nesse período.

E como foi a convivência com os membros do TPE? Eu tive um choque cultural quando encontrei o Vianinha e o Guarnieri, que eram universitários. Eu vinha do Tucuruvi. Fui pego de surpresa. A gente via filmes do Antonioni, do Godard. Eu fazia cara de intelectual, mas não entendia nada! [risos]. Eu gostava do tipo de interpretação do Totò, do neorrealismo italiano, do Aldo Fabrizi, do Oscarito, do Grande Otelo. Eu procurava estudar, mas não tinha dinheiro, então ficava na porta dos teatros, decorando os nomes das peças e dos atores. Um dia um cara me falou que eu podia ganhar para ver peças, era só rir e aplaudir, fazendo parte da claque. Mas depois do espetáculo, ele falou: “Pô, cara, não vai dar! Você ri sem fazer barulho”. Depois disso nunca ninguém riu tanto quanto eu! Nesse ano eu vi todas as peças da cidade como claque.

Rapidamente o TPE se uniu ao Teatro de Arena, dirigido por José Renato, em 1955. Com a chegada de Augusto Boal, no ano seguinte, houve uma mudança na forma de vocês fazerem teatro? O Boal chegou um tempo depois da união do TPE com o Arena. O Zé Renato reuniu a gente e falou: “Vou apresentar um cara muito bom, que veio dos EUA e tem as mesmas ideias que a gente". Recebemos o Boal com a maior felicidade. Ele veio com umas peças muito difíceis, a gente não podia fazer sozinho e tivemos que chamar gente de fora, com mais experiência. Então, vieram Lélia Abramo e Sadi Cabral. Por exemplo, no "Ratos e Homens", eu tive que fazer um velho de 80 anos. Era impossível, pô! Eu saía catando pelo de cachorro na rua para fazer barba.

Vocês já tinham clareza desde o início que queriam fazer um teatro brasileiro? Sim. Boal fundou, logo na sua entrada, o laboratório de interpretação, para quebrar a interpretação do teatro tradicional, tipo o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia], que não servia para a gente, mais empostada, com a voz projetada, de tradição europeia. Começava a busca pela interpretação brasileira. O Arena ajudou nisso, pois era pequeno, 155 lugares, o espectador ficava a um metro de distância. Fomos obrigados a interpretar de uma forma mais realista. Mas vou ser sincero: não busquei nada, eu já era assim. Para os outros foi mais difícil, porque já tinham uma forma de representar. Eu, como não tinha forma nenhuma [risos], foi mais fácil fazer o que o Boal pedia. Ele falou: “Você tem que ser natural”. Eu pensei: “Então não vou fazer nada, pô!” [risos]. Eu não tinha ideia de que estava inaugurando uma nova forma de representar.

De que forma as peças nacionais, como "Eles Não Usam Black-Tie", de Gianfrancesco Guarnieri, surgiram nesse processo? Não tinha peças brasileiras que falassem da vida dos trabalhadores, como queríamos. A primeira foi "Black-Tie", que se passava em uma favela, e a gente teve que buscar aquele corpo, aquela forma de falar, de viver. Depois dela, o Boal fundou o Seminário de Dramaturgia, e aí muitas peças apareceram. Eu mesmo escrevi uma, "Pintado de Alegre", que montamos depois de discutir muito no seminário. E o meu azar é que, com o sucesso estrondoso do "Black-Tie", todas as outras peças que vieram depois, até mesmo a "Chapetuba Futebol Clube", do Vianinha, ficaram ofuscadas. Não estou dizendo que a minha é uma obra-prima, mas podia ter tido uma carreira melhor, ou não [risos].

Além de ator e dramaturgo, você foi contrarregra e fez iluminação. Dizem que chegou até mesmo a morar no Arena, é verdade? O Arena nunca deu dinheiro. Muitas vezes eu tinha que dormir lá, porque não tinha como voltar para casa, que era longe. Praticamente morava lá, mesmo que não oficialmente. E acontecia uns casos loucos nessas noites. Uma vez, o Chico de Assis estava ensaiando a peça do Ary Toledo. E encasquetou, às 2h da manhã, que tinha que descobrir como era a nota lá para afinar um instrumento. Ligamos para cantores e compositores, dizendo: “Se você puder dar o lá para a gente, por favor” [risos]. Ninguém acreditava. Até que o maestro Diogo Pacheco falou: “Pô, esse barulho do telefone é o lá!”. Eu até escrevi uma peça sobre isso: “A Banda que Perdeu o Lá”.

Vocês passaram a viajar o Brasil com essas peças, que fizeram muito sucesso. E na viagem para o Rio, você, Vianinha e outros não voltaram mais para São Paulo. Por quê? Não voltei para São Paulo pois o Arena estava em alta artisticamente, mas não financeiramente. Eu e o Vianinha fomos para a TV Tupi, mas continuamos com nossa luta política e cultural. Ganhávamos dinheiro na televisão, mas entramos para o CPC [Centro Popular de Cultura] da UNE [União Nacional de Estudantes]. Lá dirigi o filme "Os Mendigos" e fui assistente do Leon Hirszman no "Cinco Vezes Favela". Era uma época em que todo o mundo queria descobrir o jeito brasileiro de representar. No cinema, nas artes plásticas, na literatura, na música. E eu nunca me acostumei (isso é uma coisa importante) com a maneira de fazer televisão, teatro ou cinema depois dessa época.

Mas você é um ator que fez coisas boas na televisão. Agora está fazendo a série "Tapas e Beijos". Eu falei com o diretor da série, o Maurício Farias, que eu tenho um outro jeito de fazer comédia. Mais minimalista, estudado, mas tem que me dar oportunidade para fazer isso. Eu tenho muitos projetos para a televisão, mas é difícil de emplacar. O problema na televisão é que atores vêm de várias escolas. Eu vim do Arena e nunca me acostumei com o jeito de representar que a indústria do espetáculo me obriga a fazer, onde tudo é rápido e os atores não gostam de conversar sobre o ofício. É “vamos gravar!”, aí cada um faz do seu jeito. Ninguém discute a cena. Mas eu tenho que saber o que é a cena! Senão fica uma coisa automática. Eu conheço tanto o estilo de representar dos meus colegas lá do “Tapas e Beijos” que fica um jogo marcado. Representar mesmo, jogar junto, foi só com meus amigos, no Teatro de Arena. Tenho muita saudade daquilo tudo.


Paula Autran, mestre e doutora em artes cênicas pela USP, é autora de "Teoria e Prática do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena" (Dobra Editorial) e "O Pensamento Dramatúrgico de Augusto Boal. As lições da EAD" (Desconcertos).

Sara Mello Neiva é mestre e doutoranda em artes cênicas pela USP.

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