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Néstor García Canclini

Aplicativos crescem na cultura e podem substituir instituições obsoletas

Redes sociais tentam criar novos cenários de cidadania, avalia antropólogo argentino

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Néstor García Canclini

Antropólogo argentino

[RESUMO] Em contraponto ao desprestígio de partidos e instituições, novos tipos de representação e atuação política ganham forma nas redes sociais. Embora limitadas pela efemeridade de seus atos e pelo jogo das grandes corporações com seus algoritmos, essas experiências via aplicativos podem levar a uma certa recuperação da cidadania.

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Em cada vez mais países, a vida pública parece se diluir entre partidos que são desprestigiados e a mídia ou as redes manipuladoras. É possível sair do jogo entre órgãos governamentais ou partidos e as corporações eletrônicas que roubam os nossos dados e os articulam em algoritmos para prever e disciplinar nossos comportamentos?

No meio, como já sabemos, estão os movimentos sociais, que se aliam às redes digitais e tentam criar outros cenários de cidadania: feministas, ambientalistas, jovens indignados, rebeliões dos espionados (Telegram, agências independentes de contrainformação e verificação de dados).

Ilustração para Ilustrissima de Carol Nazatto
Ilustração - Carol Nazatto

Essas experiências nos levam a imaginar novas formas de pensar e fazer política mais a partir dos cidadãos que dos partidos, mas os movimentos sociais alternativos costumam ser de alta intensidade e curta duração. Alguns conseguem criar formas inéditas e flexíveis de institucionalidade.

Vou fazer uma breve revisão de como começou a atual descidadanização, desde a perda de representatividade dos partidos até a recuperação do espaço público por aplicativos e plataformas digitais.

Da videopolítica aos algoritmos

Podemos dizer que a submissão consentida que nos surpreende em tantas eleições “democráticas” nos últimos anos não começou com a manipulação das redes digitais, dos bots e trolls, mas sim (como um fenômeno sociocultural) quando fomos sendo transformados em cidadãos midiáticos.

Decepcionados com as burocracias estatais, partidárias e sindicais, os cidadãos recorrem ao rádio e à televisão para conseguir o que as instituições não oferecem: atenção, visibilidade imediata e, algumas vezes, contribuições financeiras.

Costuma haver simulação nos meios de comunicação de massa, que se apresentam como intermediários eficazes das autoridades, mas que atraem porque ouvem.

Há muito tempo, Beatriz Sarlo disse: “A cena televisiva é rápida e parece transparente; a cena institucional é lenta e suas formas (precisamente as formas que tornam possível a existência das instituições) são complicadas até a opacidade que engendra a desesperança”.

Nos estudos sobre os usos do rádio e da televisão, constatou-se que os meios de comunicação às vezes geram agrupamentos de cidadãos: grupos de autoajuda, redes de ouvintes de rádio, associações de bairro, circuitos de troca e debate sobre necessidades coletivas, “microesferas públicas”, como foram chamadas por John Keane, com a limitação, dizia este autor, de que “sua atenção está voltada para o hoje”.

Outras vezes, os vínculos mediados pelo rádio e a televisão fazem com que alguém assuma, escreveu Rosalía Winocur, “os problemas públicos, tornando-os visíveis, socializando-os, interpretando-os, explicando-os, dando-lhes um sentido universal (isso pode acontecer com qualquer um de nós)”.

Esta autora se perguntava até onde esses imaginários são emancipadores ou apenas recuperam laços patriarcais (o médico de família, o consultório sentimental), conseguem interpelações eficazes aos funcionários públicos ou reinstalam cidadãos de primeira (citados por comentaristas de notícias, políticos ou acadêmicos, que hoje seriam chamados de influenciadores) ou cidadãos de segunda classe (vendedores ambulantes, bloqueadores de rodovias). Os meios de comunicação ajudam a criar outras comunidades ou desviam do ceticismo para as já existentes?

Estamos falando da pré-história da descidadanização. Suas ambivalências se expandem com novos pactos entre os cidadãos e os poderes digitais:

a) Os meios de comunicação se revitalizam (com a potência das suas filmagens) como testemunhas privilegiadas e velozes, que ocupam o vazio da credibilidade pública. Substituem a justiça na declaração de culpados.

b) As redes sociais redistribuem o microfone e a câmera, gerando a sensação de que qualquer pessoa está habilitada para condenar. Faz com que todos nos tornemos inseguros, ao mostrar que comportamentos pessoais podem ser filmados e maciçamente divulgados. A vulnerabilidade e a impotência dos cidadãos aumentam quando sabemos que a soma dos nossos comportamentos será combinada em algoritmos, e esses cálculos do âmbito íntimo, organizados por forças secretas e globalizadas, serão utilizados para nos dirigir como consumidores e como cidadãos. O espaço público onde a cidadania deveria ser exercida, apesar de sua superfície tão visível, parece-nos opaco e distante.

Entretanto, nesse novo cenário comunicacional nasceu o utopismo cibernético. Cada cidadão poderia acessar as informações sobre como seus governantes administram a esfera pública, como se corrompem, poderia conversar no Facebook, trocar tweets com outros cidadãos e talvez desenhar políticas alternativas. Em suma, emancipar-nos. O que havia na lógica da internet e fora dela para que essas ilusões fossem frustradas?

A forma de governar mudou

Na transição da primeira para a segunda década do século 21, passamos de acreditar que as redes nos empoderavam a descobrir, antes da pandemia, que vivíamos uma luta entre a informação aumentada e uma redução na capacidade de decidir. Da governamentalidade estatística, passamos à governamentalidade algorítmica.

Na fase de governança estatística, governos, partidos, empresas e consultorias faziam enquetes com objetivos específicos: aumentar a propaganda e seduzir grupos diferenciados para elevar sua eficácia comercial.

Por outro lado, sob a expansão algorítmica, bilhões de dados dispersos são correlacionados, com certa independência das instituições que antes os geraram para fins sociais. Quais são as possibilidades de intervenção dos cidadãos contra o controle e a vigilância do Google: “a quais lugares você foi? O que comprou? Quais filmes assistiu na Netflix? Qual é a sua temperatura?”.

Tanto conhecimento acumulado pelas corporações eletrônicas aumenta seu poder diante das instituições, políticas e culturais, e elas são obrigadas a comprá-lo. No entanto, não se trata de uma oposição clara entre instituições pouco confiáveis, formadas dentro de Estados nacionais e hoje subordinadas aos mercados financeiros globais.

Vejamos dois exemplos. Primeiro, museus e bienais que seguem as regras transnacionais do prestígio e da valorização econométrica da arte. Também são combinados com bolsas e programas de apoio cultural de Estados e empresas, museus, teatros e festivais cofinanciados com fundos públicos e privados, normas públicas para o uso de espaços culturais, midiáticos, urbanos e de associações independentes.

O outro exemplo é o dos movimentos sociais, que geralmente são frágeis, como dissemos, mas, em muitos casos, são institucionalizados como ONGs, nutrem-se de recursos e informações públicos, competem e cooperam com alguns governos.

Nesse intercâmbio complexo, emergem novas formas de institucionalidade a partir da sociedade civil. Existem também instituições, como os museus, parcialmente reinventados, permeáveis às inovações de novas gerações de gestores culturais, artistas, escritores, designers e especialistas nas formas recentes de comunicação.

São inumeráveis as instituições nas quais prevalecem as inércias, enfraquecidas pelos drásticos cortes no orçamento, perplexas diante das redes sociodigitais. E vemos movimentos sociais cujos impulsos e crenças se nutrem mais da indignação diante das desigualdades e injustiças do que de um conhecimento crítico dos mercados socioculturais e comunicacionais e de novos hábitos e práticas dos usuários.

No entanto, uma certa recuperação da cidadania —por exemplo, as contínuas batalhas feministas e sua articulada expansão internacional— está renovando o que entendemos por institucionalidade sociocultural.

É enorme o desafio para os deteriorados partidos, sindicatos e aparelhos estatais, onde a preocupação por reproduzir-se prevalece sobre a compreensão dos novos pactos entre poderes econômicos, comunicacionais e disposições inovadoras dos cidadãos-consumidores e usuários.

Não é menor o desafio para os acadêmicos, habituados a uma autonomia que muitas vezes se reduz ao desligamento de sociedades carentes do saber científico e, por outro lado, para os professores e pesquisadores jovens precarizados, obrigados a desdobrar-se em tarefas excessivas e instáveis, cujo acesso às universidades e a empregos com maior impacto social é dificultado pelo pragmatismo produtivista e pela austeridade orçamentária.

A pandemia acentuou as dúvidas sobre o que seria possível mudar a partir das instituições e dos movimentos políticos ou socioculturais. Nem tudo se reduz ao impasse entre renovar instituições endurecidas ou ativar movimentos sociais que muitas vezes também incorrem em burocratizações e inércias hierárquicas ou caudilhistas.

A fluidez da situação atual incita a repensar as oposições. Sociólogos da arte, como Nelson Goodman e Nathalie Heimich, propuseram substituir a pergunta, cronicamente não resolvida, de “o que é a arte?” por “quando há arte?”.

Se indagamos quando há instituições podemos transcender a resposta que implica um edifício, um aparelho administrativo, seu lugar em um organograma, o programa anual de atividades e o orçamento necessário.

Uma instituição, por exemplo, um museu, remete-nos não apenas a edifícios solenes e coleções de obras, mas também a artistas e curadores que andam por outros locais públicos onde seu caráter de visitantes não pode ser isolado de outras práticas (profissionais, recreativas, religiosas, de consumo), das empresas que os patrocinam, dos dispositivos de propaganda ou comunicacionais que, na mídia e nas redes, constroem o reconhecimento de certos objetos como artísticos.

Diante da pandemia que fechou os espaços culturais, constatamos que pode haver museus cujo acervo se mobiliza sem edifício, que o teatro pode existir sem um grande palco e 500 lugares.

Quando há aplicativos? Não só quando substituem a visita ao museu por uma página virtual ou permitem agendar a gravação de um filme para vê-lo quando tivermos tempo. Servem principalmente para tirar selfies nos museus? Geralmente acontece quando se gasta mais tempo posando do que olhando para as obras.

Todavia, às vezes é uma forma diferente de se apropriar de certas obras ou eventos (desde um show até uma manifestação política) que adquirem um significado pessoal, de gravar o momento em que estivemos com o/a nosso/a parceiro/a ou para enviá-lo: muitos são feitos pensando em um destinatário. Uma etnografia da densidade dos comportamentos ajuda a descobrir os variados significados presentes em um ato.

A relação com os outros era mediada e contida por instituições, que serviam de evidência de que estávamos acompanhados. Como se reconfiguram os afetos, as certezas e o desamparo quando recorremos a aplicativos, pagamos e cobramos à distância, recebemos imagens de exposições em outros continentes ou exames médicos nas telas?

Se os telefones celulares servem para falar, ainda que seja por meio de comunicações diferidas, como nos chats, quando marcamos rapidamente encontros, ou pelo menos nos reunimos em conversas sem ver-nos e sabemos que os outros estão lá, o que eles pensam e o que os toca, sentimos diariamente que os aplicativos podem substituir instituições obsoletas (partidos, igrejas, sindicatos).

Também os limites da não presença, a necessidade de instituições renovadas que durem mais do que os acontecimentos, o que as trocas digitais registram com mais frequência.

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