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Tiago Ferro

Millôr, como Machado, foi grande intérprete do Brasil

Nascido há cem anos, humorista escrachou os dilemas de um país derrotado e arrasado

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Desenho de Millôr Fernandes sobre o Rio de Janeiro

'O Rio de Janeiro Continua Lindo' (2001, nanquim, lápis de cor aquarelável, crayon e colagem sobre papel), de Millôr Fernandes Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

Tiago Ferro

Escritor, crítico literário e autor de 'O Seu Terrível Abraço' e 'O Pai da Menina Morta', vencedor do Prêmio Jabuti 2019 (ambos pela editora Todavia)

[RESUMO] Autor de vasta obra em variados meios de expressão, Millôr Fernandes, que faria cem anos na quarta-feira (16), foi um dos mais argutos artistas que refletiram a respeito do Brasil. Em afinado diálogo com Machado de Assis, compartilhou com ele a busca, pela via do humor e do ceticismo, de uma forma que desse conta das mazelas brasileiras, o que em ambos desaguou no retrato sarcástico de uma sociedade derrotada e arrasada.

A obra de Millôr Fernandes pertence à melhor produção de artistas e intelectuais que pensaram o Brasil como problema. Desse grupo fazem parte, entre outros, Machado de Assis, a irreverência do modernismo de 1922, Pagu, Antonio Candido, Caetano e a tropicália, Glauber Rocha, Zé Celso e, mais recentemente, o movimento manguebeat e o cinema de Kleber Mendonça Filho.

Todos estavam atentos à produção vanguardista mundial do seu tempo. Todos colocaram, de maneira desrecalcada, essas tendências inevitavelmente importadas em contraste e conflito com o chão histórico periférico. Buscaram, assim, descobrir a nota específica da experiência brasileira, que precisa ser reiteradamente redescoberta graças aos sucessivos, inevitáveis e novos descompassos provocados pela marcha do capital.

Em desenho, Millôr joga tinta de uma caneta em estátua de militar montado em um cavalo, empunhando uma espada
'Corrosão' (1975, nanquim, aquarela, hidrocor e grafite sobre papel), de Millôr Fernandes - Arquivo Millôr Fernandes/Acervo IMS/Divulgação

De acordo com o jornalista Paulo Roberto Pires, que prepara biografia de Millôr, o grande laboratório de experimentação do "guru do Méier" foi a seção Pif-Paf, na revista O Cruzeiro.

O que nos interessa é que essa abertura criativa nas páginas da grande imprensa ocorreu entre o fim da ditadura Vargas e o golpe de 64, período único de efervescência artística e intelectual no país, quando certas fronteiras de classe foram rompidas e discutiam-se abertamente os caminhos para a superação da pesada herança colonial. Com algum grau de ingenuidade, acreditava-se que o vento democrático soprava inevitavelmente a nosso favor.

A demissão de Millôr da revista, em 1963, após pressão de leitores escandalizados com a sua versão para o mito de Adão e Eva, apontava a virada que estava por vir na vida política e ideológica do país. Na carta aos leitores de O Cruzeiro, o pedido de desculpas por parte da revista fechava assim: "É perante Deus que nos penitenciamos".

Uma combinação de fé e interesses inconfessáveis, repleta de desfaçatez, que marcaria a vida pública do país. Basta pensar nas marchas da Família com Deus pela Liberdade, quando rogava-se, ao mesmo tempo, a Deus e aos generais, ou nos pastores que negociavam liberação de verbas do Ministério da Educação do governo Bolsonaro.

Seja como for, após o golpe de 64 estava montado o quadro para o conflito. Artistas e intelectuais não estavam mais ao lado de políticos reformistas embalados pelo populismo desenvolvimentista, ajudando a pensar diferentes maneiras para a nossa "inevitável" entrada na civilização industrial, seja via o etapismo do PCB, seja na onda cool da bossa nova.

Artistas passaram a se posicionar em franca oposição ao governo. Mesmo assim, por cochilo dos generais, a produção intelectual foi deixada em grande medida livre, ao menos até a promulgação do AI-5, em dezembro de 1968. Isso gerou uma explosão de criatividade e atualização crítica sem igual e que deita raízes até os nossos dias, já evidentemente ressecadas pelo desenrolar da história.

Embora sempre rebaixada em relação ao cânone de artistas brasileiros "sérios" de seu tempo, a obra de Millôr comprovou muitas vezes a vantagem do lado "menos sério".

Tomemos como exemplo as transgressões cinematográficas de Glauber Rocha, que, com sua "estética da fome", devolvia ao então chamado Primeiro Mundo e aos circuitos privilegiados da arte a parte feia da sua própria realidade. Explodia-se o localismo e colocava-se em questão o papel de cada um na produção do horror contemporâneo, abalando as respectivas autoimagens.

Millôr foi além. Tanto quanto Glauber, abusou de um proposital "fazer malfeito", ao menos de acordo com as normas artísticas que nos serviam de padrão. Traços grosseiros, borrados, mistura despudorada de técnicas e referências desencontradas para entregar não a estética da fome, mas a fome em patamar impensável e inatingível fora do humor.

Em uma charge de 1970, publicada nas páginas da revista Veja, um soldado separa uma família de esfomeados e um jardim, onde uma placa informa: "É proibido comer a grama". Se, em Glauber, a agressão estética tem intuito revolucionário, em Millôr é derrisória e fatalista. Millôr descobria antes de todos que não se tratava de atraso a ser superado, mas de um outro tipo de sociedade, talvez irremediavelmente sem saída.

Zé Celso e parte da produção teatral de ponta vão se voltar às soluções brechtianas do teatro épico após o golpe, não sem um bocado de contradições geradas pelo desencaixe entre soluções pensadas na Europa destruída pela Primeira Guerra e o Terceiro Mundo engajado e nacionalista no interior das disputas da Guerra Fria.

O verbete "Brecht" em "Millôr Definitivo: a Bíblia do Caos", seleção de aforismos reunida pelo autor, diz o seguinte: "Para compreender a situação do Brasil, já ninguém discute, é necessário um certo distanciamento. Que começa abrindo uma conta numerada na Suíça".

O didatismo brechtiano que prometia o horizonte socialista a partir do distanciamento e subsequente estranhamento do que era compreendido como natural no processo social —a saber, a exploração do homem pelo homem— é deslocado abruptamente para a vantagem pessoal descarada, em uma típica estratégia humorística: levar as palavras ao pé da letra.

O distanciamento mental tornava-se literal, com implicações diretas na vida política brasileira com suas mais que conhecidas tramoias. O salve-se quem puder, que ainda hoje muitos não aceitam, era revelado pelo solavanco cognitivo humorístico do aforismo e fechava de uma vez o horizonte de transformações desejadas pela ala progressista do país.

Se Millôr tem os pés de sua produção no chão histórico de seu tempo, o artista com o qual encontramos seu mais afinado diálogo é Machado de Assis. O conjunto heterodoxo e aparentemente desencontrado de influências de cada um, bem como a atuação em diferentes gêneros —neste caso, com vantagem para Millôr, que lidou igualmente com a palavra escrita e o desenho—, talvez não sejam o bastante para colocá-los lado a lado.

Apontam, contudo, para uma mesma busca: uma forma que desse conta da nota específica do país, com seu ritmo próprio, mas ainda assim pendurado nos ponteiros do relógio do centro do capitalismo.

Dessa maneira, compreende-se melhor a imagem que Millôr fazia de si como "escritor sem nenhum estilo"; na verdade, trata-se de um artista com estilo único, efeito de uma mistura heterodoxa e bem-calibrada de influências: do teatro de Shakespeare aos clássicos gregos, do haicai ao expressionismo alemão e às estripulias do dadaísmo e muitos, mas muitos outros etceteras que não cabem aqui destrinchar. Toda essa cultura ilustrada foi filtrada pela crônica da vida carioca e colocada a serviço da crítica corrosiva.

A página das influências machadianas já foi muito estudada, e é possível localizar nos dois artistas cariocas a mesma inquietação, o mesmo "livre pensar", a mesma manipulação dos fluxos externos que se chocavam com uma realidade estranha aos padrões e parâmetros internacionais de onde vinham os modelos.

O encontro de ambos também se dá na busca pelo "sentimento íntimo do país", que, no caso de Machado, vai desaguar em um retumbante "nada" como resposta aos projetos desenvolvidos nestas bandas, o horizonte vazio que era a própria estrutura social brasileira.

Esse nada, distante do mal-estar metafísico e colado ao chão pedestre da periferia do capital, como descoberto por Roberto Schwarz ao estudar o narrador defunto das "Memórias Póstumas de Brás Cubas", explode ironicamente ao encerrar o romance no capítulo Das negativas, afirmando que uma vida tão vazia teve por fim um "pequeno saldo" que representa a mais ousada torção humorística da nossa literatura: "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria". Saldo construído, portanto, essencialmente na negatividade.

Schwarz destaca o quanto as idas e vindas do narrador, a volubilidade de Brás Cubas, representam o ritmo do romance e de uma sociedade, ao mesmo tempo, independente e escravocrata, moderna e indecente. Esse beco sem saída machadiano, ainda assim produtivo e parte do mundo, se desdobra e brilha em toda a produção de Millôr, que muito antes de José Simão já sacara o "país da piada pronta" e daí iria extrair a matéria para a sua produção.

Uma realidade desencaixada em relação aos seus modelos é, por si só, humorística. Sendo assim, e na contramão, o humor socialmente situado e perspicaz ganha contornos realistas, o que coloca Millôr no patamar de nossos grandes intérpretes. Com a dificuldade extra de que não se dá sentido seguro à sua produção essencialmente fundada no humor —portanto, inevitavelmente desestabilizadora. O que, por outro lado, representa uma proteção contra as derrapagens ideológicas já apontadas em nossos intérpretes clássicos.

Onde certos leitores preferem enxergar um grande pensador da falha inevitável do homem no mundo, o que é absolutamente aceitável, encontramos um pensador perspicaz da entrada torta do Brasil na modernidade.

Tome-se como exemplo o aforismo "O dinheiro não é tudo. Tudo é a falta de dinheiro". Na primeira parte, estamos diante do velho dilema burguês entre o lucro e os sentimentos supostamente não mercantilizáveis, como o amor e a amizade. O desdobramento, no entanto, surpreende, ao confirmar a afirmação inicial pelo avesso.

Também nos devolve ao país que não completou sua entrada no rol muito restrito de sociedades industrializadas e justas, isso sem deixar de reter seu modelo pairando no ar, estabelecendo regras como uma assombração em horizonte inalcançável. Cabia ao humorista escrachar essas regras ao rebaixar até o limite a realidade na qual estava inserido.

Por aqui, pouco importam os nobres sentimentos que fraturavam a consciência burguesa europeia; diga-se de passagem, que hoje já não fraturam mais nada. Na verdade, pouco importa qualquer sentimento.

Estamos diante da violência pura. O travejamento histórico da ex-colônia, projeto criado exclusivamente para a extração de valor, laboratório daquela mesma burguesia que sofria pelas páginas de Balzac, ainda cobra seu preço. Em meia dúzia de palavras, Millôr desmonta todo o drama que se revela patético diante de uma sociedade que se apresenta então por inteiro, derrotada e arrasada.

Bolsonaro nos legou 33 milhões de brasileiros famintos. O tempo do mundo já não é capaz de —e ao que tudo indica, nem sequer precisa— oferecer grandes abstrações às quais possamos nos agarrar para projetar saídas da nossa realidade tenebrosa.

Hora de reler Millôr Fernandes.

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