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Gabriela Lisboa Pinheiro

Teatro de Millôr, menos conhecido, é tão bom quanto o resto de sua obra

Artista escreveu 30 espetáculos dos anos 1950 a 1990, compondo amplo painel do país

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Gabriela Lisboa Pinheiro

Doutora em literatura brasileira pela USP com tese sobre a dramaturgia de Millôr Fernandes

[RESUMO] Na vasta obra de Millôr Fernandes, as peças de teatro talvez sejam sua produção menos conhecida hoje, mas permanecem, no centenário do artista, relevantes e corrosivas. Por quase 50 anos, ele criou um amplo painel político e social brasileiro em seus espetáculos, recorrendo a variados estilos para mostrar como os dramas da humanidade são risíveis.

Em um ensaio intitulado "Como Tornar-se um Gênio", George Bernard Shaw afirmou que gênios não existem. "O que há é uma conspiração para fazer de conta que os gênios existem e uma escolha das pessoas certas para assumir o papel imaginário de gênio." O dramaturgo irlandês completou: "O difícil é ser escolhido".

Tanto Shaw como Millôr Fernandes ocuparam essa posição como artistas e pensadores —e deixaram uma extraordinária produção que comprova tal merecimento. Millôr escreveu prosa, poesia e teatro; foi jornalista, artista plástico, tradutor, apresentador de TV, roteirista. Em meio a tamanha e tão diversificada obra, sua dramaturgia ficou relativamente esquecida, mas continua relevante, divertida, polêmica, criativa e reveladora de uma assombrosa cultura.

Os atores Fernanda Montenegro e Fernando Torres em cena da peça "É..." (1977), de Millôr Fernandes - Divulgação

Millôr escreveu 30 peças de teatro entre o início dos anos 1950 e o final dos anos 1990. Em conjunto, elas oferecem um painel abrangente da realidade política e social do país, do papel da mulher na sociedade, da revolução sexual, do conflito entre gerações, do pensamento burguês, da filosofia, da história, do pensamento humanista. A lista é realmente extensa.

Estilisticamente, lançou mão de um arsenal de métodos bastante amplo: recorreu a estratégias do realismo, do surrealismo, da farsa, da comédia de costumes, das colagens, do teatro épico. Por essas razões, é difícil encaixar sua obra em alguma vertente do teatro brasileiro, o que ajudaria Millôr a ser mais bem compreendido como dramaturgo.

O trabalho de Millôr como tradutor de peças teatrais também impressiona. Ele verteu para o português cerca de 80 textos, sobretudo do inglês, mas publicou apenas uma pequena parte desse trabalho. Destacam-se, nesse universo considerável, as traduções de Shakespeare, referenciais para a língua portuguesa. A constância nessa atividade ajuda a demonstrar a dedicação ao teatro.

As peças de Millôr, de forma geral, atestam um traço característico de sua produção: o ceticismo. A incredulidade remonta à infância. Aos 11, após o velório de sua mãe, e sendo já órfão de pai desde os 2 anos, Millôr deitou-se embaixo da cama, na casa de um tio, e chorou longamente.

Encerradas as lágrimas, sentiu o que chamou de "a paz da descrença" —o garoto saído do subúrbio carioca passou a desconfiar de todas as certezas que costumam acompanhar as pessoas. Poderíamos exemplificar essa postura em qualquer de suas peças, mas falemos de uma em particular.

"É..." estreou em 1977, no Rio de Janeiro, e foi um dos maiores sucessos de Millôr no teatro. Escrita a pedido do casal Fernanda Montenegro e Fernando Torres, a peça fala, segundo o próprio autor, da "inutilidade das teorias" quando se tenta aplicá-las à vida real e cotidiana.

No enredo, os personagens Vera e Mário, um casal de meia-idade, são confrontados em seus valores por outro casal, os jovens Ludmila e Oto. Ambos os casais, muito cultos, vindos de ambientes universitários e vivendo a vida burguesa e ensolarada do Rio, revelam-se incapazes de sustentar suas convicções e ideais a respeito do casamento.

O humor infalível não impede a percepção da seriedade do tema e dos acontecimentos, que terminam em um desdobramento trágico. A peça agradou ao público, permaneceu em cartaz por três anos ininterruptos e ultrapassou o marco de mil apresentações.

Segundo toda uma tradição de filósofos, pensadores e escritores, assuntos sérios são condição para a existência do humor. O próprio Millôr, em seu "Decálogo do Verdadeiro Humorista", de 1955, dizia: "Para escrever, o humorista deve escolher sempre o assunto mais sério, mais triste, mais chato, ou mais trágico. Só um falso humorista escreve sobre assuntos humorísticos". Assim foi seu teatro e não haveria melhor exemplo para comprovar essa regra que sua peça "Os Órfãos de Jânio".

Encenada pela primeira vez em 1980, sob direção de Sergio Britto, "Os Órfãos de Jânio" faz referência direta à peça "Os Filhos de Kennedy", do dramaturgo americano Robert Patrick, traduzida por Millôr em 1975.

Na trama de Patrick, cinco personagens relembram suas experiências de vida na década de 1960. Na de Millôr, cinco personagens em um bar, em monólogos alternados e sucessivos, recordam fatos de suas vidas e do Brasil nos 20 anos anteriores, desde a renúncia de Jânio Quadros.

As personagens compõem um painel social variado: Conceição, uma funcionária pública muito inocente e deslumbrada com a figura de Jânio; Beto, um cantor de churrascaria que almejava ser "astro da Globo"; Nelita, uma jovem contestadora, engajada e ressentida com a criação repressiva que recebeu; Carlos, jornalista, sistematicamente censurado pelo regime militar; Gilda, jovem interessada na diversão e no prazer possibilitados pela época. Em comum, todos viveram, em alguma medida, os horrores da ditadura.

Há, ainda, uma sexta personagem: um barman, que praticamente se restringe a circular, ouvir os demais e servir bebidas a eles. Uma espécie de confidente, figura antiga na tradição teatral. No prefácio à peça, Millôr sugere que o barman seria ele próprio.

No texto, o autor vai, constantemente, desmontando ideias cristalizadas e potencialmente positivas que costumamos carregar em relação aos perfis apresentados. A controvérsia sempre esteve no horizonte de Millôr, dono de pontos de vista que nunca fizeram concessões.

Voltando um pouco no tempo, temos a peça "Um Elefante no Caos", escrita em 1955. Ela se filia à tradição das farsas, gênero teatral estabelecido na Idade Média que apareceu em todos os períodos posteriores da história do teatro. Seus recursos cômicos garantem o riso largo.

Inicialmente, a peça tinha o nome "Por Que me Ufano de Meu País", mesmo título de uma famosa obra de 1901 que serviu de cartilha cívica para os estudantes do Brasil, mas uma onda de protestos resultou em censura, comentada de divertida e ferozmente por Millôr no prefácio da edição lançada em livro. Segundo o crítico Decio de Almeida Prado, os censores não souberam perceber que a peça era um "hino de amor" ao Brasil, "hino às avessas", é certo, de um "ironista profissional".

Outros textos teatrais de Millôr se enquadram na estrutura das chamadas colagens. Esse gênero, cuja principal característica está em reunir fragmentos de textos próprios e de terceiros, permite uma comunicação criativa e eficaz com o público a respeito dos muitos temas abordados.

Como espetáculo, chama a atenção pela complexa execução; como leitura, resulta em uma experiência única. Fazem parte desse gênero as peças "Liberdade, Liberdade" (1965), escrita com Flávio Rangel, "O Homem do Princípio ao Fim" (1967) e "A História É uma História" (1976).

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A atriz Renata Carvalho no espetáculo 'Liberdade, Liberdade', de Millôr Fernandes e Flavio Rangel - Eduardo Knapp - 1º.jun.21/Folhapress

Em um país em que escritores e dramaturgos não alcançam grandes públicos, por razões que todos conhecemos, Millôr quebrou barreiras e conquistou grande popularidade. Por seis décadas, foi um nome central da imprensa brasileira, muitas vezes publicando e divertindo leitores diariamente —e em mais de um veículo de imprensa ao mesmo tempo.

Ainda assim, parte de sua obra é desconhecida mesmo entre artistas e leitores interessados. Talvez as celebrações de seu centenário lancem novas luzes sobre suas peças, que, a exemplo do melhor que desenhou ou escreveu, continuam retratos afiados de como a humanidade é risível.

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