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Danilo Thomaz

Milei é novo passo do eterno tango de refundação da Argentina

Entenda o vaivém histórico da política do país nos últimos 150 anos

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Danilo Thomaz

Jornalista com mestrado em ciência política pela UFF, onde pesquisou a história do desenvolvimento do Estado e da economia argentina entre 1880 e 2002

[RESUMO] Vitória de Javier Milei, "el loco", que toma posse neste domingo (10), é a mais nova tentativa desesperada de saída redentora na Argentina, o que remonta a uma história conturbada de pelo menos 150 anos, marcada por alguns avanços e muitos retrocessos sociais, instabilidades políticas e sucessivos golpes de estado.

No tradicional "La Noche de Mirtha", o programa de debates à mesa de jantar promovido pela atriz, apresentadora e diva argentina Mirtha Legrand, hoje com 96 anos, notória antiperonista, um desabafo histórico: "Quero decirte que te perdono, Mirtha." Um aperto de mãos, levantadas ao alto, sela nova aliança: "Mirtha y Cristina, muchas gracias a todas y todos!"

A cena de 2016 pode espantar, não sem motivo. Como pode ter ficado de fora do noticiário um acordo desses, entre Cristina Kirchner, então ex-presidente da Argentina, líder política da ala esquerda e hegemônica do peronismo, com a mais influente apresentadora da TV daquele país, que já a chamou de "atriz frustrada" e a acusou de ser autoritária? Como também ficou fora do noticiário o encontro, à mesma mesa, lado a lado, antes do primeiro turno das eleições, entre o ultraliberal Javier Milei e Cristina.

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei, durante discurso de campanha em Buenos ires - Agustin Marcarian-7.ago.23/Reuters

Não há, contudo, nada de estranho acontecendo. A "Cristina" do programa de Mirtha é, na verdade, a humorista Fátima Flórez. Ela ganhou notoriedade por imitar a então presidente no programa "Periodismo para Todos", do jornalista Jorge Lanata, notório crítico do kirchnernismo.

De peruca ruiva, vestido preto, pérolas brancas, Fátima tornou-se popular reproduzindo as pausas, a voz rouca e os gestos dramáticos da presidente em sua querela com o Grupo Clarín, maior conglomerado de mídia argentino, e seus opositores. Qualquer crítica de Lanata era respondida com "Clarín miente!" e alcunhas de "gordito golpista", em referência ao peso do apresentador.

É esta humorista, de cabelos loiros e escovados, que subirá à Casa Rosada ao lado do namorado Javier Milei no próximo dia 10 de dezembro, quando o ultraliberal toma posse como presidente argentino, na data em que se completam 40 anos da volta da democracia no país.

Popularizado por seu histrionismo, diálogos além-vida com seu cachorro, o economista sempre técnico e didático em suas explicações assume a Presidência argentina tendo à sua sombra o principal representante do establishment do liberalismo do país, o ex-presidente Maurício Macri. Isso após dizer que acabaria com a "casta política".

Uma mirada mais atenta em Milei e na própria história argentina, no entanto, mostra o quão pouco deve surpreender sua aliança com os macristas, os "radicais", como são chamados os liberais no país, e mesmo com alas à direita do peronismo.

Em entrevista à Mirtha Legrand, Milei afirmou que o melhor ministro da Economia do país foi Domingo Cavallo, do peronista de direita Carlos Menem. O período foi marcado pela abertura econômica, privatizações e uma semidolarização. A vice-presidente de Milei, Victoria Villarroel, visitava o general Jorge Rafael Videla na prisão.

Videla foi o primeiro dos ditadores a comandar o país na fase de repressão que se estendeu de 1976 a 1983, tendo-o presidido no período mais duro. Ao mesmo tempo, com Videla teve início a abertura econômica e uma forte financeirização da economia. O presidente eleito, por sua vez, promete devolver a Argentina aos tempos de grandeza do século 19.

Para compreender esse complexo fenômeno chamado Milei é preciso entender até onde a Argentina se desenvolveu e como e quando começou a sua decadência, sempre envolta a mitos, que são tão parte da história do país como Evita Perón e o cantor Carlos Gardel.

Um passo em frente

A ascensão econômica argentina começou entre os anos 1870 e 1880. O país foi beneficiado por fatores geográficos e geopolíticos. No primeiro caso, o pampa úmido, como é chamada a terra argentina, altamente produtiva. No segundo, os principais produtos do país —carne, lã e cereais— eram justamente aqueles de que necessitava a Grã-Bretanha, então a fábrica do mundo, para alimentar sua população a baixo custo e continuar desenvolvendo sua indústria.

Em troca dos produtos agropecuários exportados, o país recebeu uma série de investimentos diretos da parceira britânica, que lhe permitiram dar um salto em termos de infraestrutura, urbanização, industrialização e no desenvolvimento de uma sociedade moderna e diversa. Como havia pouca mão de obra, os salários eram mais altos, o que beneficiou a indústria e o mercado de consumo local.

O alto nível de organização da sociedade, no início de século 20, começou a transformar as práticas políticas. Em 1912, veio a Lei do Voto Universal. Em 1916, Hipólito Yrigoyen foi eleito pela Unión Civica Radical (UCR) para dar conta dos anseios dessa sociedade.

O sucesso foi relativo. A Argentina, por conta do fechamento das economias durante a 1ª Guerra (1914-18), teve um avanço da indústria. Yrigoyen criou em 1922 a YPF, a estatal argentina de petróleo. O "radical" conseguiu um novo mandato para dar continuidade ao seu projeto, mas a crise de 1929, que fez desabar os preços dos produtos agrários, deixou as elites dos pampas em pânico.

Em 1930, Yrigoyen foi derrubado por uma Junta Militar.

Um passo para frente e outro para trás

O período a partir de 1930 foi marcado por um retrocesso social argentino. Em 1943, os militares nacionalistas tomam o poder e dão início a uma série de transformações na política, na economia e na sociedade. A principal delas ocorre na Secretaria da Seguridade Social e do Trabalho, comandada pelo militar Juan Domingo Perón.

À frente da secretaria, Perón sedimentou suas relações com as massas argentinas. Direitos trabalhistas que eram demandados desde o governo Yrigoyen foram atendidos, formalizaram-se sindicatos e criaram-se feriados.

Em 1946, Perón assume a Presidência da República tendo ao seu lado a ex-atriz de melodramas Eva Duarte, agora Perón. Uma moça de origem pobre, de traços suaves, cabelos loiros, que encantou as massas do país pela relação direta que estabeleceu com elas por meio de obras sociais.

Entretanto, havia outro lado. Evita também era uma "Dama de Ferro", que controlava de forma dura e autoritária a Central Geral do Trabalho (CGT, a CUT argentina), implacável com qualquer voz dissonante. Nesse duplo, ajudava o marido a equilibrar seu ambicioso projeto político: o de criar uma sociedade moderna, industrializada, baseada no pacto entre o setor produtivo nacional e os trabalhadores.

O projeto durou enquanto Perón teve divisas (dólares) para fazê-lo. Em seu primeiro governo, entre 1946 e 1951, o presidente nacionalizou o Banco Central, que ficava nas mãos dos diretores dos bancos privados (e estrangeiros), fortaleceu a YPF, subsidiou a indústria local, aumentou os salários para níveis nunca vistos e transformou o governo central em detentor dos produtos agrários, enfraquecendo as elites rurais.

Os altos preços dos produtos agrícolas e pecuários, num mundo que se reerguia dos escombros da 2ª Guerra, respondiam pela bonança do período. Era, como se dizia, "la cadena de la felicidad" —exceto para as vozes dissonantes, expurgadas das universidades, sindicatos e de parte da burocracia.

Com a queda dos preços agrícolas, a situação econômica começou a piorar. Reeleito, Perón foi, pouco a pouco, deixando de lado as políticas de seu primeiro governo. Fechou a estatal do agro, abriu as fronteiras econômicas para os Estados Unidos, adotou medidas recessivas de combate à inflação e respondeu aos protestos com forte repressão.

A morte de Evita, em 1952, apagou parte da mítica peronista. Em 1955 Perón foi derrubado, deixando como legado o avanço dos direitos sociais e dos trabalhadores. Sem, no entanto, conseguir avançar do ponto de vista do desenvolvimento para além de uma indústria leve e dependente de insumos e maquinários externos.

Em 1966, um novo golpe militar pretendeu erradicar a instabilidade do país com um projeto semelhante ao da ditadura brasileira.

Um passo para trás

Juan Onganía foi mais um militar que pretendeu refundar a Argentina. O seu golpe dado em 1966 denominou-se Revolução Argentina e teve apoio de todos os setores sociais. Onganía pretendia fazer uma revolução produtiva que equiparasse a indústria do país, ao menos, à brasileira, que já vinha crescendo desde os anos 1930.

Para tanto, instituiu um instrumental complexo de políticas liberais, do ponto de vista da racionalização da máquina pública, e desenvolvimentistas, do ponto de vista da indução da economia.

O resultado foi díspar. Por um lado, o ditador conseguiu, de fato, fazer avançar os ramos mais produtivos da indústria. Por outro, a forte repressão e a perda de poder aquisitivo das massas cobraram sua conta em protestos históricos como o Cordobazo (1969), que reuniram diversos setores da sociedade e acabaram com seu governo.

Nascia ali não apenas uma nova juventude política argentina, mas também uma esquerda armada. Nesse período surgem movimentos de guerrilha como os Montoneros, ligados aos peronistas.

A escalada de violência e a crise econômica trouxeram Perón de volta à cena política, em 1973. A situação era tal que mesmo os militares mais conservadores, temendo uma insurreição, o queriam de volta. Perón era a única força capaz de aglutinar um país dividido, armado, em constante crise econômica, cuja última lembrança de unidade nacional havia sido a sua "cadena de la felicidad".

Por um lado, Perón buscou um pacto em que os empresários segurariam os preços e os trabalhadores segurariam as demandas por aumentos salariais como forma de conter a inflação. Por outro, estimulou a perseguição da Três A, braço armado de direita do peronismo, contra os Montoneros e outras organizações armadas de esquerda.

Os planos naufragaram logo, e Perón morreu em 1974. Em seu lugar, assumiu sua viúva e vice-presidente, Isabelita Perón, que deu seguimento à política repressiva e conduziu a política econômica de maneira errática.

Somente às vésperas do golpe de 24 de Março de 1976 é que Isabelita buscou apoiar-se nos trabalhadores. Já era tarde. O governo foi derrubado ante uma coalizão entre as elites econômicas, os militares e uma classe média e mesmo trabalhadora exaustas de duas décadas de crise. O que se pretendia, como em 1966, era refundar a Argentina e extinguir a insurreição desde a sua raiz. "O silêncio é saúde", dizia-se à época.

(Mais) um passo atrás

A Junta Militar inicialmente liderada pelo general Jorge Rafael Videla buscava reprimir sem dó nem piedade qualquer sombra de oposição, como fez a ditadura logo em seu início.

Ainda que a esquerda armada estivesse derrotada, seus dirigentes e militantes foram perseguidos pelo governo ditatorial, que institucionalizou a prática de sequestro, morte e desaparecimento. Os militantes sequestrados eram atirados ainda com vida ou prestes a morrer na Bacia do Prata.

A legitimidade da ditadura não se baseou somente no uso da força. Nos anos de Videla, houve também uma profunda transformação na economia argentina. A farra especulativa proporcionada pelos juros altos fez toda a sociedade, das elites aos trabalhadores, se tornar rentista para consumir importados baratos, fruto da abertura econômica.

Essa realidade durou até a crise de 1979, quando o aumento da taxa de juros dos Estados Unidos fez ruir o projeto de Videla. Veio então o estouro da dívida externa, a recessão e o início da crise inflacionária, que acometeu os demais países latino-americanos.

A partir daí os eventos se precipitaram. A sociedade civil começou a se reorganizar na busca pelos desaparecidos. Os militares tentaram ainda um último apelo ao nacionalismo com a Guerra das Malvinas. Sem saber que estavam, na verdade, criando seu próprio fim.

Um passo ao lado e para trás

Os militares foram condenados no histórico julgamento de 1985, anistiados em 1990 no governo do peronista liberal Carlos Menem e novamente punidos a partir de 1998.

Entretanto, seu legado econômico permaneceu. A queda da indústria, em decorrência da abertura indiscriminada, consolidou o Brasil como potência regional e tornou a economia argentina bastante dependente de nosso país.

A perseguição a tudo que cheirasse a esquerda, peronismo, desenvolvimentismo, industrialismo, sindicatos e direitos sociais e trabalhistas também deixou sua marca. Não por acaso, Carlos Menem elegeu-se em 1989 prometendo uma "revolução produtiva" e um "salariazo" e entregou o oposto disso.

Sem resistência à esquerda, Menem assumiu o controle do Partido Justicialista e, contando com o apoio das elites, deu continuidade ao processo econômico iniciado pela ditadura.

A medida fundadora do período foi o Plan de Convertibilidad, que instituía, por força de lei, a paridade entre o peso argentino e o dólar. Para sustentar isso, Menem e seu ministro da Economia, Domingo Cavallo, dependiam de um forte ingresso de dólares.

Para tanto, reduziram o aparato estatal por meio de privatizações e reformas administrativas, deram fim a regulações econômicas para o livre fluxo de capitais e flexibilizaram direitos sociais e trabalhistas.

Entretanto, as crises cambiais dos países emergentes nos anos 1990 tornaram a situação argentina mais e mais complicada. Quando estourou a crise cambial brasileira, em 1999, o país ficou no limite do insustentável.

O governo seguinte, de Fernando de la Rúa, buscou medidas de redução de danos, mas fracassou. Em 2001, uma brutal saída de dólares obrigou o país a instituir um congelamento parcial das contas correntes em moeda estrangeira, o chamado "corralito".

Entre 20 dezembro de 2001 e 1º janeiro de 2002, a Argentina chegou a ter cinco presidentes (um deles, Ramón Puerta, assumiu duas vezes o posto). Com a vitória de Eduardo Duhalde, o país adotou uma política de câmbio flutuante internamente e fixo para o comércio exterior. A recuperação econômica voltou-se para o setor produtivo.

A partir do governo de Nestor Kirchner, em 2003, que renegociou boa parte da dívida externa argentina, e até o final do primeiro governo Cristina, em 2011, o país viveu em relativa estabilidade. Com crescimento econômico médio de 8%, o dobro do brasileiro, e melhoria da situação social.

Foram os embates de Cristina, ainda em 2008, com o setor agropecuário, na tentativa de criar um imposto sobre a exportação do setor, que redespertaram a oposição. E também a levaram a uma crescente radicalização —ou "grieta", como dizem os argentinos. Neste período surge Fátima Florez, mulher de Milei, no programa de Jorge Lanata.

Um passo atrás

Macri assumiu a Argentina numa situação de relativa estabilidade do ponto de vista da relação dívida/PIB, em torno de 50%, mas com índices inflacionários em torno de 25%, uma economia desaquecida e baixo estoque de reservas cambiais (pouco acima de US$ 40 bi).

Logo de cara, acabou com as restrições no câmbio —o que na prática facilitava a poupança em dólar e os tirava do mercado—, que continham o valor do peso perante o dólar. E realizou, em 2018, um empréstimo com o FMI que mudou a situação. Para pior.

As regras rígidas de pagamento do empréstimo —US$ 44 bilhões, o maior da história e o dobro do acordado na crise de 2001— e a liberação do câmbio fizeram esvair as reservas cambiais argentinas e acelerar a inflação. Entre 2017 e 2019, a média anual mais que dobrou: saiu de 25% para 53,8%, maior índice desde o Plan de Convertibilidad.

Dada a situação, Mirtha Legrand, apoiadora de primeira hora de Macri, vaticinou em seu programa em 2019 que "lo peor" aconteceria, a volta de Cristina, dada a situação socioeconômica do país.

Seu vaticínio, de alguma forma, se cumpriu com a eleição do peronista de centro Alberto Fernández, antigo desafeto de Cristina. Buscando uma saída moderada para a crise inflacionária, só agravou a situação.

Veio então uma nova saída redentora, de refundação do país, com a eleição de Milei e suas promessas de dolarizar uma economia sem reservas cambiais, que conta com as piores condições possíveis para adquirir dólares no mercado. Ele promete privatizar o pouco que restou a ser privatizado. E abrir uma economia que já é aberta e onde quase não há poupança interna, posto que as elites poupam seu dinheiro no exterior, e a classe média guarda os dólares dentro de casa.

Nada diferente de 1966, quando Onganía pretendia uma "Revolução Argentina". De 1976, quando a Junta Militar buscava refundar o país a qualquer preço. De 1989, quando Menem assumiu uma economia com índices de inflação superiores a 1.000% ao ano e completou o giro econômico iniciado pela ditadura.

A diferença é que da Argentina desses tempos sobrou pouco, quase nada. Salvo a lembrança em concreto e arquitetura de uma Buenos Aires que pretendia ser um dos centros do mundo —imponente, luxuosa, refinada— e acabou cercada por todas as contradições de qualquer país subdesenvolvido.

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