Manifesto de atirador do Texas ecoa linguagem de Trump

Jovem matou 22 pessoas a tiros em hipermercado em El Paso, na fronteira com o México

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Peter Baker Michael D. Shear
The New York Times

Nos comícios da campanha para as eleições do ano passado, o presidente Donald Trump avisou repetidamente que os Estados Unidos estavam sofrendo um ataque de imigrantes que rumavam para a fronteira. "Vejam o que está marchando, é uma invasão!", declarou em um comício. "Isso é uma invasão!"

Nove meses depois, um homem branco de 21 anos é acusado de abrir fogo em um hipermercado Walmart em El Paso, no Texas, matando 22 pessoas e ferindo outras dezenas, depois de escrever um manifesto contra a imigração e anunciar que "esse ataque é uma resposta à invasão hispânica do Texas".

O presidente dos EUA, Donald Trump, fala sobre os ataques a tiros dos últimos dias, na Casa Branca
O presidente dos EUA, Donald Trump, fala sobre os ataques a tiros dos últimos dias, na Casa Branca - Leah Millis/Reuters

O suspeito escreveu que seus pontos de vista "são anteriores a Trump", como se estivesse prevendo o debate político que ocorreria após o banho de sangue. Se o presidente não inspirou originalmente o atirador, entretanto, ele trouxe para a corrente dominante as ideias de polarização e pessoas antes limitadas às bordas da sociedade americana.

Enquanto outros líderes manifestaram preocupação com a segurança na fronteira e os custos da imigração ilegal, Trump encheu seus discursos públicos e o Twitter de uma linguagem às vezes falsa, cheia de medo, enquanto reunia na Casa Branca um corpo de radicais, demonizadores e teóricos da conspiração evitado por presidentes anteriores de ambos os partidos.

Por isso, Trump está mal dotado para oferecer o tipo de força curadora e unificadora que outros presidentes projetaram em tempos de tragédia nacional.

Em declarações pela televisão na tarde de domingo (4), antes de embarcar no Air Force One para retornar a Washington de sua casa em Nova Jersey, Trump elogiou o desempenho da polícia e ofereceu condolências às vítimas e suas famílias em El Paso, bem como em Dayton, Ohio, onde um tiroteio em massa não relacionado ocorreu no início do domingo.

"O ódio não tem lugar em nosso país, e vamos cuidar disso", disse o presidente, que não quis entrar em detalhes. Até o pronunciamento na Casa Branca, no final da manhã de segunda, ele não havia mencionado o racismo ou o manifesto de El Paso, mas concentrou-se no que chamou de "um problema de doença mental".

Os candidatos presidenciais democratas não perderam tempo no domingo para apontar o dedo para Trump, argumentando que o presidente encorajou o extremismo com o que eles chamaram de linguagem odiosa.

Os assessores e aliados de Trump rejeitaram isso, argumentando que os inimigos políticos do presidente estão explorando uma tragédia para promover suas ambições políticas.

"Estou dizendo que o presidente Trump tem muito a ver com o que aconteceu em El Paso ontem", disse Beto O'Rourke, candidato presidencial democrata que representou El Paso no Congresso, no programa "Face the Nation" na CBS.

O'Rourke disse que Trump "semeia o tipo de medo, o tipo de reação que vimos em El Paso ontem".

Mick Mulvaney, chefe de gabinete da Casa Branca, disse que é ultrajante responsabilizar Trump pelos atos de um louco ou sugerir que o presidente simpatiza com os supremacistas brancos.

"Não acho que seja justo sentar aqui e dizer que ele não acha que o nacionalismo branco é ruim para o país", disse em "This Week", da ABC.

"Essas pessoas estão doentes. Você não pode ser um supremacista branco e ser normal da cabeça. São pessoas doentes. Você sabe disso, eu sei, e o presidente sabe disso. Esse tipo de coisa tem que parar. E nós temos que descobrir uma maneira de resolver o problema, não descobrir uma maneira de culpar alguém."

Ligar o discurso político, ainda que acalorado, aos atos específicos de assassinos em massa é um exercício pesado, mas especialistas em comunicação política disseram que os líderes nacionais podem criar um ambiente com suas palavras e ações e têm a responsabilidade especial de evitar inflamar indivíduos ou grupos, mesmo sem querer.

"As pessoas que realizam esses ataques já são pessoas violentas e odiosas", disse Nathan P. Kalmoe, professor-assistente na Universidade Estadual da Louisiana, que estudou o discurso do ódio.

"Mas altos líderes políticos e figuras partidárias da mídia encorajam o extremismo quando endossam as ideias da supremacia branca e jogam com linguagem violenta. Ver a pessoa mais poderosa da Terra repetindo suas opiniões odiosas pode até dar aos extremistas uma sensação de impunidade."

Isso surgiu repetidamente durante a presidência de Trump, sejam os supremacistas brancos que marcharam em Charlottesville, na Virgínia, ou o terrorista que enviou explosivos aos adversários políticos de Trump e figuras proeminentes da mídia, ou o atirador que invadiu uma sinagoga em Pittsburgh depois de reclamar online sobre "invasores" nos Estados Unidos.

David Livingstone Smith, professor de filosofia na Universidade da Nova Inglaterra e autor de um livro sobre desumanização de categorias inteiras de pessoas, disse que Trump encorajou os americanos cujas opiniões eram consideradas inaceitáveis pela sociedade pouco tempo atrás.

"Isso sempre fez parte da vida americana", disse. "Mas Trump deu permissão às pessoas para dizerem o que pensam. E isso é como o crack. É poderoso. Quando alguém permite que você seja autêntico, é uma coisa muito, muito potente. As pessoas saíram das sombras."

Kris Kobach, ex-secretário de Estado no Kansas, um linha-dura contra a imigração e próximo de Trump, disse que os democratas estão sendo ultrajantes. "Eles tentam explorar essa horrível tragédia para atacar o presidente e promover uma agenda de fronteiras abertas e controle de armas", disse. "Não é apenas incorreto, é inapropriado fazer isso num momento em que as pessoas ainda estão sofrendo."

A linguagem obscura anti-imigração tem temperado a política americana há gerações. Políticos nos anos 1880 e 1920 subiram ao poder aproveitando-se do medo de italianos, japoneses, chineses e outros imigrantes, alimentando temores sobre a perda da "identidade americana".

Em anos mais recentes, pessoas que traficaram conspirações racistas e advertiram que os imigrantes eram uma ameaça à segurança e ao bem-estar econômico dos americanos nativos foram amplamente ignoradas pelo establishment bipartidário, mesmo quando deram voz a pontos de vista de muitos americanos que se sentiam privados de direitos.

Mas Trump abraçou conspirações racistas durante anos: ele estava entre as principais vozes que pressionaram o "birtherism", alegando que o presidente Barack Obama não nasceu nos Estados Unidos [e portanto não poderia ser presidente].

Desde sua campanha à presidência, Trump levou esses pontos de vista ao centro da política americana.

Ele denuncia os imigrantes membros de gangues como "animais" e reclama que migrantes não autorizados "invadem e infestam" os Estados Unidos. A imigração ilegal é uma "monstruosidade", disse ele, enquanto exigia que congressistas americanas não brancas "voltassem" para seus países de origem.

Ele usa a palavra "aliens" [literalmente "alienígenas"] para se referir a imigrantes muito depois de ela ter sido considerada desumana até mesmo por outros republicanos.

E sua linguagem sobre a imigração é impregnada de raiva: em El Paso no início deste ano, ele exigiu que os democratas o ajudassem a "deportar estrangeiros criminosos e manter os coiotes, contrabandistas e traficantes de droga do inferno fora de nosso país".

Ao longo do caminho, Trump capacitou grupos como a Federação para a Reforma da Imigração Americana, que foi designada como um grupo de ódio pelo liberal Centro Jurídico para a Pobreza Sulina. Ele se tornou um megafone confiável para os discursos anti-imigrantes veiculados pela Breitbart News e por Lou Dobbs na Fox Business Network.

E Trump semeou sua administração com ativistas, advogados e um quadro de ex-funcionários do Capitólio no extremo do espectro anti-imigração, todos os quais haviam trabalhado durante anos na obscuridade, considerados por democratas e republicanos como demasiado radicais.

No manifesto de 2.300 palavras que a polícia relacionou a Patrick Crusius, o suspeito do tiroteio em El Paso, ele disse que estava "simplesmente defendendo meu país da substituição cultural e étnica provocada por uma invasão".

Trump disse o mesmo há quatro anos, em um evento organizado pelos Texas Patriots em uma escola da área de Houston. "Tudo está vindo através da fronteira", disse Trump. "Os ilegais, os carros, a coisa toda --é como uma grande bagunça, blah. É como vômito."

Crusius descreveu os imigrantes legais e ilegais como "invasores" que estão inundando os Estados Unidos, termo que Trump frequentemente emprega para defender a construção de um muro na fronteira.

Em julho de 2015, Trump tuitou aos críticos: "Do que vocês realmente deveriam estar com raiva é a invasão de milhões de ilegais nos EUA! Não do Donald Trump".

Depois de usar o termo regularmente durante a campanha no outono passado, ele também começou a usá-lo na campanha do próximo ano. Em um anúncio do Facebook em fevereiro, por exemplo, sua campanha escreveu: "É crítico pararmos a invasão".

Em março, Trump defendeu o uso da palavra para um público de ativistas conservadores. "Eles não gostam quando eu digo isso —mas estamos sendo invadidos", afirmou ele sobre seus críticos. "Estamos sendo invadidos por drogas, por pessoas, por criminosos. E nós temos que pará-los."

Assessores da Casa Branca argumentam que há uma grande diferença entre favorecer políticas duras na fronteira e tolerar a violência, mas eles se dedicaram a uma nova rodada de críticas ao presidente desde o momento em que souberam do tiroteio e do manifesto em El Paso.

Vários assessores de Trump disseram estar contentes que as mensagens públicas dele depois do tiroteio foram contidas e presidenciais, mas admitiram que ele precisa fazer mais para unir o país.

Por sua parte, outros republicanos fizeram questão no final de semana de denunciar o nacionalismo branco, indo para onde o próprio Trump não iria.

"Houve vários ataques de terroristas brancos autodeclarados aqui nos Estados Unidos nos últimos meses", disse George P. Bush, comissário de terras do Texas e filho do ex-governador da Flórida, Jeb Bush, em um comunicado. "Esta é uma ameaça real e presente que todos nós devemos denunciar e derrotar."

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves 

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