Descrição de chapéu China Brics

Encurralada, oposição em Hong Kong luta para sobreviver após seu pior ano

Repressão decisiva de Pequim e pandemia quebram espinha do movimento que paralisou o território

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São Paulo

Em julho de 2003, Tak tinha 16 anos e foi a um protesto de rua pela primeira vez. "Nos reunimos na praça do parque Victoria e marchamos. Aquele foi o meu despertar político", conta o hoje advogado em uma ONG de direitos humanos em Hong Kong.

Naquele ano, atos que levaram até 500 mil às ruas do território semiautônomo chinês barraram a tentativa de impor um artigo à Lei Básica, a Constituição local, que basicamente impedia a crítica organizada a Pequim. Foram bem-sucedidos.

Joshua Wong (centro) e outros ativistas entram em van policial antes de serem sentenciados à prisão
Joshua Wong (centro) e outros ativistas entram em van policial antes de serem sentenciados à prisão - Anthony Wallace - 2.dez.2020/AFP

Em agosto de 2019, já em campanha para tentar ser eleito para o equivalente a vereador no pleito de novembro daquele ano, Tak foi preso durante um ato na mesma região da praça, a elegante e caríssima Causeway Bay.

Ele engrossava o movimento que havia derrubado uma proposta de lei para facilitar a extradição de honcongueses para a China, passou três dias na cadeia e foi libertado. Os atos tiraram Hong Kong de seu eixo, coalhando as cosmopolitas ruas do bairro Central de barricadas e gás lacrimogêneo.

"Eu não venci no meu distrito, mas a oposição foi vitoriosa. Só que não sabíamos o preço que iríamos pagar", afirmou Tak, que não pode dar seu nome completo nem dizer de onde fala por mensagem de aplicativo: está aguardando julgamento pela participação nos protestos em 2019.

A conta veio. Primeiro, a pandemia do novo coronavírus tirou o ímpeto do movimento oposicionista, que se manteve nas ruas com uma agenda pró-democracia.

Desarticulada, a oposição a Pequim esperava um bom desempenho nas eleições de setembro para o Conselho Legislativo, o Parlamento da ex-colônia britânica. Mas sob alegação de que a Covid-19 seria um risco inaceitável, o pleito foi adiado para 2021.

Em maio, o golpe final: o anúncio por Pequim de que uma nova Lei de Segurança Nacional, mais draconiana do que qualquer outra proposta anterior de controle, que passou a valer em 30 de junho. "Achei que tínhamos de resistir", contou Tak.

Ele foi ainda mais uma vez para a mesma praça no parque Victoria, no dia 4 de junho.

Contrariando a ordem do governo local, milhares participaram da vigília anual em memória das vítimas do Massacre da Praça da Paz Celestial, evento fulcral da China moderna, quando tanques acabaram com uma manifestação de estudantes pró-democracia em Pequim há 31 anos.

Tak não foi preso, mas apanhou da polícia. Para ele, o futuro da oposição honconguesa morreu exatamente ali, sendo enterrado quando a Lei de Segurança entrou em vigor, semanas depois. Ele insinua que já pode estar fora do país, mas não diz. "Você não tem ideia do nível de vigilância."

A Lei de Segurança Nacional, grosso modo, deu mão livre para Pequim intervir diretamente no território de Hong Kong, instalando inclusive agentes de repressão antes proibidos no arranjo de devolução da então colônia em 1997, que deveria durar 50 anos.

Nada que sugira sentimentos independentistas ou de conluio com estrangeiros passa sem a ameaça direta de prisão. Ainda pior, como teme Tak, ativistas como o jovem Joshua Wong foram parar na cadeia por protestos de 2019.

O famoso acerto do "um país, dois sistemas" deixou de existir na prática, e nem todo mundo está infeliz com isso. Como relata Tak, muitos empresários e banqueiros estavam genuinamente preocupados com o impacto da turbulência política permanente no território.

Além disso, ele lembra que os partidos pró-Pequim, dominantes no Conselho Legislativo, foram derrotados, mas tiveram 40% dos votos na eleição local de 2019.

Agora, a oposição segue desnorteada, após seu pior ano desde 1997. O ato de bravura dos 15 deputados remanescentes pró-democracia no Conselho, de renunciar após Pequim cassar 4 de seus colegas, ainda é visto como uma faca de dois gumes.

"Perdemos uma tribuna para o mundo. Cada dia estamos mais iguais a Pequim, com um Parlamento que só carimba o que o Partido Comunista mandar, mas com uma classe empresarial satisfeita", queixou-se num fórum de ativistas Steve Lee, que atua em Mong Kok, na área continental de Hong Kong.

Há alguma subjetividade adicional. O discurso pró-democracia ganha simpatia no Ocidente e faz emergir uma Hong Kong idílica, ainda sob o domínio colonial. Mas durante os mais de 150 anos de reinado de Londres, o local não era uma ilha de tranquilidade.

Nos grandes distúrbios de 1967, o sentimento era antiocidental, por exemplo.

Com líderes presos ou sob forte coerção, é previsível que a eleição do próximo setembro ossifique de vez as estruturas políticas. "Não temos para onde correr", escreveu Lee. Os atos murcharam de vez.

Se isso vai de fato afastar investidores, como temem os analistas do mercado financeiro entusiastas do supercapitalismo desregulado vigente no território, é algo a ver. A aposta de Pequim ficou clara, embasada no conceito do regime de que já basta uma Taiwan rebelde.

Tak acredita que o rumo será o de uma normalização da subjugação. "Ninguém achava que Pequim iria esperar até 2047 com aquele povo na rua protestando. E muitos só veem uma disputa entre a China e o Ocidente, os Estados Unidos, conosco perdidos no meio", afirma.

Nesse sentido, a chegada de Joe Biden ao poder é vista com desconfiança. Donald Trump apostou numa retórica Guerra Fria 2.0 contra a China e colocou Hong Kong no centro de sua estratégia.

Se é certo que a rivalidade permanece, talvez o tom seja amainado —fazendo parecer ainda mais bizarras as cenas de estudantes cantando o hino nacional americano e louvando Trump em novembro de 2019.

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