Viagem de Bolsonaro à Rússia dá sinal errado ao mundo, diz ex-embaixador dos EUA

Melvyn Levitsky afirma que visita presidencial vai contra histórico do Brasil de defesa da lei internacional

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Washington

A visita do presidente Jair Bolsonaro (PL) à Rússia, programada para começar na segunda-feira (14), dá um sinal errado ao mundo: o de que usar ameaças militares para resolver disputas é um caminho tolerável. A avaliação é de Melvyn Levitsky, ex-embaixador dos Estados Unidos no Brasil (1994-1998) e que também trabalhou na embaixada americana em Moscou.

"A viagem não faz sentido nos termos da posição do Brasil sobre a lei internacional. O país tem uma reputação de ser muito cuidadoso sobre o respeito às regras internacionais. É um membro muito ativo da ONU, e a Carta da ONU proíbe tentar resolver uma disputa ou impor sua vontade a outro país por meios militares", afirma.

Levitsky, 83, atuou como diplomata dos EUA por 35 anos. Atualmente, é professor de política internacional na Universidade de Michigan. Em conversa com a Folha, ele também comentou sobre as motivações de Putin para pressionar a Ucrânia e a aproximação da Rússia com a China.

O presidente Jair Bolsonaro recebe o presidente Vladmir Putin, da Rússia, para reunião da cúpula dos Brics, no Palácio do Itamaraty - Pedro Ladeira - 14.nov.2019/Folhapress

Como o senhor avalia a decisão do presidente Jair Bolsonaro de viajar à Rússia? É uma viagem em um momento muito ruim, quando 100 mil soldados russos estão marchando para a fronteira e ameaçando um país vizinho. Um país importante como o Brasil fazer uma visita oficial nesse momento é realmente [passar] um sinal errado —não só aos russos, mas a vários outros países que podem ter disputas similares. Há muitas disputas sobre fronteiras na África, por exemplo. Não queremos a erosão do princípio de resolver disputas pacificamente em vez de ameaças de ações militares.

A viagem não faz sentido nos termos da posição do Brasil sobre a lei internacional. O país tem uma reputação de ser muito cuidadoso sobre o respeito às regras internacionais. É um membro muito ativo da ONU, e a Carta da ONU proíbe ações deste tipo, como tentar resolver uma disputa ou impor sua vontade a outro país por meios militares.

Parece que o presidente [Bolsonaro] pensa que manter a viagem é algo normal a fazer. Eu li na imprensa que ele disse que [a viagem] era um plano de longa data, mas isso não é uma boa desculpa. Isso poderia ser adiado muito facilmente, dada a tensão que existe agora. Não vejo uma justificativa real por parte do governo brasileiro sobre por que essa visita parece ser tão importante agora.

A visita pode trazer problemas para as relações do governo do Brasil com a gestão de Joe Biden? O relacionamento tem se deteriorado, com base no que Bolsonaro disse, mas também pela forma com que lidou com a Covid e com seu apoio aberto ao [ex-]presidente [Donald] Trump. No entanto, relacionamentos pessoais são importantes, mas não são tudo. Há ainda uma importante relação Brasil-EUA. Fui embaixador no Brasil e nós [EUA] sempre a consideramos muito importante. Em termos de comércio, investimentos privados no Brasil e vice-versa. Isso [a viagem à Rússia] não ajuda na relação, mas ela irá prosseguir. Ela não tem de ser só no nível do topo [entre presidentes].

Melvyn Levitsky, durante aula na Universidade de Michigan
Melvyn Levitsky, durante aula na Universidade de Michigan, em 2017 - Divulgação

O que o Brasil poderia fazer para tentar ajudar a resolver a crise entre Rússia e Ucrânia? O Brasil é uma potência importante. Tem muita influência, relações pelo mundo e um Ministério das Relações Exteriores muito bom, com diplomatas muito bem treinados.

Seria muito útil se o Brasil fizesse algum tipo de declaração sobre a questão de um país como a Rússia estar ameaçando um vizinho, isso poderia ajudar a convencer os russos de que ações assim estão fora das leis internacionais. E há muitos países em desenvolvimento que acompanham o que Brasil está fazendo. Qualquer declaração do Brasil é bastante influenciadora.

Como o senhor avalia as ações de Biden e dos governos europeus na crise atual? Biden tem feito um bom trabalho porque está muito próximo dos aliados na Europa. A Otan tem deixado claro que a Ucrânia ainda não se qualifica para se tornar membro e que pode levar tempo antes de atingir os parâmetros.

Minha sensação é que as negociações no caso com a Rússia envolvem basicamente dizer: "Vamos acalmar isso. Afaste suas forças dali. A Ucrânia não vai entrar na Otan amanhã ou no futuro próximo". E tentar, como dizemos, tirar isso do forno e colocar em banho-maria. A situação precisa se acalmar, e é isso que os EUA e outros aliados da Otan estão tentando.

Vamos ver qual será a resposta de Putin. Nenhum país vai dar uma garantia de que a Ucrânia nunca se tornará membro da Otan. Uma declaração assim traria muitos danos aos princípios das relações internacionais, à liberdade dos países de escolher com quem eles vão se aliar e quais relações vão ter.

O senhor acredita que há risco real de uma invasão pela Rússia? Se houver invasão, apesar de todas as resistências internacionais, a Rússia perderia influência pelo mundo. Se Putin quer que a Rússia retome seu status de grande potência, [invadir] é o tipo de coisa que ele não deveria fazer.

A tensão deve seguir por algum tempo. É uma daquelas situações em que os russos precisam de uma desculpa para recuar. E isso pode demorar. As tropas russas estão lá. A Ucrânia também está agora muito bem armada. E se a Rússia invadir, os ucranianos vão estar lutando em seu território contra um invasor. Então, o incentivo será muito forte. Eu não gosto de fazer previsões porque, em assuntos internacionais, nunca se sabe, mas minha sensação é de que isso [a crise] irá ferver por algum tempo e talvez depois esfriar. E desaparecer aos poucos.

Por que a Rússia se importa tanto em manter a Otan longe, sendo que não há ameaça palpável de uma invasão da Rússia por parte do Ocidente? Putin está no poder há bastante tempo. Ele já disse que a maior tragédia da história recente foi a queda da União Soviética. Lembre-se: ele foi criado como figura da KGB, teve uma carreira em meio à ideologia soviética comunista. Essa não é a ideologia que ele está defendendo, mas sim o sentido de "precisamos voltar a ser uma grande potência", com o mesmo poder dos EUA, França, Europa etc. É uma compulsão dele, e ele tem um bom apoio no país, além de uma forte oligarquia que se tornou muito rica e se beneficiou de seu governo.

Não é uma ideologia como na Guerra Fria, mas há um ressentimento persistente em Putin e na elite russa de que seu lugar no mundo foi diminuído. A economia do país não está muito bem. A população se reduziu de forma considerável. A Rússia tem muitas terras, mas boa parte é improdutiva. Então, há uma quase paranoia sobre perceber ameaças. A Otan não está ameaçando a Rússia, não foi desenhada especificamente contra a Rússia, embora [se contrapor à União Soviética] tenha sido seu objetivo original durante a Guerra Fria.

O senso de que a Rússia está sendo diminuída na forma como é vista no mundo tem uma influência poderosa sobre Putin. Ele quer recuperar o status de grande potência. Sua capacidade militar ainda é muito forte, apesar de a economia não estar tão bem. E tem havido protestos no país. Então, isso pode ser parte do plano de Putin para "trazer a Rússia de volta".

Como o senhor a aproximação entre Rússia e China, ressaltada na semana passada após Putin se encontrar com o dirigente Xi Jinping em Pequim? A China é muito cautelosa com os russos. Sempre foi assim, mesmo durante o período da União Soviética. Os chineses são muito sofisticados em sua política externa, e dar um sinal de que têm um relacionamento produtivo com a Rússia é algo que eles veem como positivo para eles mesmos. Eles tiveram essa reunião para mostrar que têm relações com todos os países e estão envolvidos nas grandes questões internacionais.

​​China e Rússia poderiam criar uma espécie de aliança contra os EUA? Estou certo que a Rússia gostaria de algo assim, mas não acho que a China vê isso como seu interesse. Os EUA são um grande cliente da China, e grande parte da economia chinesa depende de exportações. E se a relação [com os EUA] chegar a um ponto em que os americanos passem a buscar outros fabricantes, a China sofreria muito. E nós [americanos] precisamos dos chineses porque eles produzem um monte de coisas que não produzimos mais. Assim, não acho que a China iria tão longe para apoiar a Rússia.


Raio-x

Melvyn Levitsky, 83
Diplomata dos EUA por 35 anos, foi embaixador na Bulgária (1984-1987) e no Brasil (1994-1998). Também atuou como encarregado das relações bilaterais entre EUA e União Soviética e foi funcionário na embaixada de Moscou. Tem mestrado em ciência política na Universidade de Iowa e atualmente é professor de política internacional na Universidade de Michigan.

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