Recuo da Rússia faz de Putin um alvo para blogueiros da Guerra da Ucrânia

Relatos com menos censura sobre falhas de Moscou colocam capacidade militar em xeque

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Anton Troianovski
Moscou | The New York Times

No último sábado (10), enquanto as forças russas recuavam rapidamente no nordeste da Ucrânia, sofrendo um de seus reveses mais significativos da guerra, o presidente Vladimir Putin estava num parque em Moscou chefiando a inauguração festiva de uma roda-gigante. "É muito importante que as pessoas possam ter momentos de descontração com a família e os amigos", disse, em voz inexpressiva.

O contraste foi espantoso, mesmo para alguns dos apoiadores mais declarados do presidente. E veio destacar uma divergência crescente entre o Kremlin e as vozes que aplaudiram a invasão com maior entusiasmo.

Para esses "líderes de torcida", a retirada russa parece ter confirmado os piores receios: que as autoridades estavam tão preocupadas em manter um ambiente de "business as usual" que deixaram de lançar mão dos equipamentos e forças humanas necessárias para travar uma guerra longa contra um inimigo resoluto.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante fórum econômico em Vladivostok - Valeru Charifulin/Tass - 7.set.22/via Reuters

"Você está dando uma festa de 1 bilhão de rublos", escreveu um blogueiro pró-Rússia em post amplamente circulado no domingo, falando dos festejos comandados por Putin em Moscou para o 875º aniversário da fundação da cidade. "Qual é o seu problema? Não no momento em que está acontecendo um fracasso tão horrível!"

Ao mesmo tempo que Moscou celebrava, escreveu o blogueiro, o Exército russo estava combatendo sem contar com óculos de visão noturna, coletes à prova de balas, kits de primeiros socorros ou drones suficientes. A algumas centenas de quilômetros de distância, forças ucranianas retomaram o reduto de Izium, prosseguindo em seu avanço pelo nordeste do país e inaugurando uma nova e tensa fase da guerra.

As reações de indignação vindas de representantes da linha dura no sábado mostraram que, embora tenha conseguido eliminar praticamente toda a oposição liberal e pró-democracia na política doméstica russa, Putin ainda enfrenta o risco da insatisfação da ala mais conservadora do espectro político.

Há poucos indícios, por enquanto, de que esses setores se voltem contra Putin em consequência da contraofensiva ucraniana, mas analistas dizem que a disposição crescente mostrada pela linha dura de fazer críticas públicas aos líderes militares aponta para uma insatisfação crescente.

"A maioria dessas pessoas está em choque e não pensou que isso pudesse acontecer", diz Dmitri Kuznets, que analisa a guerra para o site Meduza. "Acho que estão genuinamente furiosas."

Como de costume, o Kremlin procurou minimizar os reveses. O Ministério da Defesa descreveu a retirada russa como uma decisão de "reagrupar" tropas, apesar de haver dito um dia antes que as forças estavam reforçando posições defensivas na região. Em Moscou, as autoridades seguiram adiante com o fim de semana festivo, com queimas de fogos e a TV estatal mostrando centenas de pessoas fazendo fila para andar na nova roda-gigante de 140 metros de altura.

Na internet, porém, as falhas estavam em plena vista, ressaltando o papel inesperado desempenhado por blogueiros militares pró-Moscou no Telegram em moldar a narrativa da guerra. Enquanto o Kremlin controla a TV na Rússia e bloqueou o acesso a Instagram e Facebook, o Telegram continua acessível e está repleto de posts e vídeos tanto de apoiadores quanto de adversários da guerra.

Os blogueiros pró-guerra, alguns dos quais acompanham tropas russas perto da linha de frente, disseminam a mensagem falsa do Kremlin de que a Rússia está combatendo "nazistas" e falam dos ucranianos em termos difamadores e desumanizadores. Mas também estão divulgando informações sobre o front mais detalhadas –e, dizem analistas, precisas— do que o Ministério da Defesa. Segundo eles, a pasta subestima o inimigo e oculta más notícias do público.

Um dos blogueiros é Iuri Podoliaka, que nasceu na Ucrânia mas se mudou para a Crimeia depois de ela ter sido anexada pela Rússia em 2014. Na sexta (9) ele disse a 2,3 milhões de seguidores que, se as forças de Moscou continuarem a minimizar a extensão real dos reveses no campo de batalha, os russos "deixarão de sentir confiança no Ministério da Defesa e no governo como um todo".

Foram os blogueiros os primeiros a soar o alarme publicamente sobre uma possível contraofensiva ucraniana no nordeste do país.

Em 30 de agosto, um porta-voz do Kremlin fez sua teleconferência de praxe com jornalistas e reiterou a mensagem costumeira: a invasão da Ucrânia estava procedendo "conforme os planos".

Combatentes voluntários ucranianos preparam lançamento de morteiro no fronte de guerra próximo à Donets, no leste da Ucrânia - Anatolii Stepanov - 22.ago.22/AFP

No mesmo dia, vários blogueiros divulgaram nas redes sociais que alguma coisa não estava procedendo nem um pouco conforme os planos. A Ucrânia acumulava forças para um contra-ataque nas proximidades de Balaklia, disseram, e a Rússia não parecia estar em condições de se defender. "Alô, alô, tem alguém em casa?" um deles perguntou. "Estamos preparados para repelir um ataque nessa direção?"

Dias mais tarde ficaria claro que a resposta era "não". Forças ucranianas passaram por cima das defesas russas em Balaklia e cidades próximas. Alguns analistas estimam que o território retomado pela Ucrânia até o fim de semana chegou a cerca de 2.500 quilômetros quadrados, assinalando uma potencial virada no conflito, que se converteu numa guerra de atrito.

A fúria de alguns blogueiros com os erros militares russos atingiu um ponto febril no sábado. Um deles caracterizou a retirada como uma catástrofe, e outros disseram que ela deixou residentes que colaboraram com as forças russas à mercê das tropas ucranianas.

E, enquanto o Kremlin ainda caracteriza a invasão como nada mais que uma "operação militar especial", vários blogueiros insistiram que a Rússia está, de fato, travando uma guerra total –não apenas contra a Ucrânia, mas contra um Ocidente unido.

A fúria incrédula reflete como alguns analistas pensam que muitos na elite russa encaram a guerra: uma campanha militar marcada por incompetência, conduzida usando recursos insuficientes, que só pode ser vencida se Putin mobilizar a nação para a guerra e impuser o alistamento militar obrigatório.

Analistas ocidentais e russos dizem que Putin precisará do recrutamento compulsório para ampliar significativamente as dimensões de sua tropa invasora. Mas ele parece determinado a resistir a tal medida, que poderia romper a passividade com que boa parte do público russo tem encarado a guerra. Em agosto, 48% disseram ao instituto independente Levada que estavam prestando pouca ou nenhuma atenção aos acontecimentos na Ucrânia.

O resultado, dizem analistas, é que Putin não tem opções boas. Escalar uma guerra cujo apoio doméstico pode se mostrar superficial pode provocar agitação interna no país. A continuação das retiradas de campo de batalha pode desencadear uma reação negativa dos setores de linha dura que aceitaram a narrativa do Kremlin de que a Rússia está combatendo "nazistas" por sua própria sobrevivência.

Desde que Moscou desistiu de capturar a capital ucraniana, Kiev, em abril, os objetivos do Kremlin na guerra não são claros, fato que está desorientando os partidários de Putin, segundo o analista militar Rob Lee, do Foreign Policy Research Institute.

"O esforço de guerra dos ucranianos é evidente, é compreensível. Já do lado russo, há sempre uma dúvida: 'o que a Rússia está fazendo?'", diz Lee. "Os objetivos não estão claros e como eles pretendem alcançar esses objetivos não está claro. Se você está travando uma guerra e não sabe ao certo qual é o objetivo último, vai ficar muito frustrado."

Tradução de Clara Allain

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