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Fabro Steibel e Celina M. A. Bottino

O projeto de reconhecimento facial da Prefeitura de São Paulo é adequado? NÃO

Falha, tecnologia pode provocar erros graves com consequências racistas

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Fabro Steibel

Diretor-executivo do ITS Rio (Instituto de Tecnologia e Sociedade), é afiliado ao Berkman Klein Center (Universidade Harvard) e membro do CNPD (Conselho Nacional de Proteção de Dados Pessoais e da Privacidade)

Celina M. A. Bottino

Diretora de Projetos do ITS Rio, é mestre em direitos humanos, afiliada ao Berkman Klein Center e sócia de Rennó, Penteado e Sampaio Advogados

O pregão para o sistema de reconhecimento facial "Smart Sampa", da Prefeitura de São Paulo, é uma ideia promissora que parte de premissas equivocadas e, por isso, deve ser abortado. Entender os problemas (e os potenciais) da plataforma proposta é essencial para avançar na agenda de gestão das cidades, privacidade e inclusão digital.

O primeiro erro do projeto é insistir no uso indiscriminado de reconhecimento facial para segurança pública, incluindo a inaceitável função de "rastreamento à base da cor da pele", uma prática que deveria ser banida. Usar câmeras para encontrar potenciais infratores na rua resulta em pelo menos dois graves problemas: racismo e ineficiência.

Reconhecimento facial é apresentado em convenção nos Estados Unidos - David McNew/AFP

O racismo deriva em especial da incapacidade da tecnologia de identificar rostos não brancos de forma similar aos rostos masculinos e brancos. Inúmeras pesquisas comprovam que o uso da tecnologia coloca pessoas negras, asiáticas, trans, indígenas e outras em risco desproporcional —o que é inconstitucional e claramente gravíssimo.

Mas usar uma tecnologia tão ineficiente é ruim também para as próprias polícias. A tecnologia erra tanto em encontrar alguém por aí que, na prática, as falhas do algoritmo induzem as forças de segurança ao erro, fazendo-as perder tempo e energia.

Importante reforçar que existem bons usos de reconhecimento facial, inclusive na segurança pública. Nos aeroportos, o uso da tecnologia para associar o passaporte ao passageiro é excelente. Mas ali lidamos com boa iluminação e supervisão humana, elementos que passam longe do projeto "Smart Sampa". Resta realçar o potencial da tecnologia em outras áreas, como a inclusão no INSS de pessoas idosas, para a abertura de contas bancárias em plena pandemia ou ainda para facilitar a vida do microempreededor.

Mas o que existe de bom no projeto "Smart Sampa"? Tudo aquilo que passa longe do reconhecimento facial e que é feito com responsabilidade em relação a como o Estado faz uso de dados do cidadão.
Vamos lembrar que dados pessoais não são petróleo, bens disponíveis para quem chegar primeiro. Dados pessoais pertencem a pessoas, e antes de coletar, conectar e processar informações de cidadãos temos que ser responsáveis e observar as regras sobre o tema. Vamos conectar o quê, para quê, com qual finalidade?

O "Smart Sampa" deixa essas perguntas para depois, focando em criar o potencial técnico para só então pensar no uso responsável. Isso já era errado nos anos 1990; só não sabíamos de forma clara o porquê. Insistir nessa tecla em 2022 é pedir para o Supremo Tribunal Federal intervir, como vimos em inúmeras decisões durante a pandemia.

Mas qual o potencial então da plataforma? Aqui resta uma oportunidade de ouro. Precisamos de infraestruturas digitais abertas, que fomentem não só o Estado mas também a sociedade. O Pix é um bom exemplo disso: digital, inclusivo e protetivo. Se São Paulo investe em ideias que auxiliam a todos, incentivando o uso responsável de dados, promovendo algoritmos abertos e combatendo a redundância de processamentos, todos ganham.

É possível criar uma "São Paulo inteligente", mas para isso precisamos abandonar o uso de uma tecnologia que já nasce datada, ainda mais se focamos em combater a "vadiagem" com base em "cor da pele" —termos do edital (cuja licitação foi suspensa, mas segue nos planos da prefeitura), deixando de lado crimes de maior impacto e muita impunidade, como os crimes econômicos e os ambientais.

Mas vale lembrar que plataformas, quando pensadas como soluções abertas e públicas, fortalecem as cidades e a cidadania. A ideia é promissora; já o projeto deve ser abandonado e repensado para, de fato, ser inteligente e responsável.

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