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Bruna Martins do Santos, Daniel A. Vila-Nova Gomes e Paulo Rená da Silva Santarém

É hora de respeitar e aprimorar o Marco Civil da Internet

Sozinhos, abusos no uso da tecnologia não explicam o preocupante retrocesso

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Bruna Martins do Santos

Pesquisadora, ativista e german chancellor fellow da Fundação Alexander von Humboldt

Daniel A. Vila-Nova Gomes

Advogado e professor no IDP, é diretor jurídico do Instituto Beta: Internet & Democracia (Ibidem)

Paulo Rená da Silva Santarém

Pesquisador e ativista, foi gestor do processo de elaboração do Marco Civil da Internet

Tarso Genro e Pedro Abramovay escreveram artigo nesta Folha ("É hora de rever o Marco Civil da Internet", 17/3) para responsabilizar as big techs pela "desinformação em massa". É um exagero culpar a lei ou a internet pelos ataques às instituições democráticas.

A tendência autoritária no país segue forte. O "tecnoautoritarismo" de vários estados contrata no mercado câmeras de reconhecimento facial a pretexto de gerar segurança pública. Há quem defenda abrir mão de direitos e admitir a rastreabilidade de mensagens. E, recentemente, veio a público o ilegal monitoramento de telefones pela Abin.

Senadores comemoram a aprovação do Marco Civil da Internet, em 2014 - Joel Rodrigues - 22.abr.14/Folhapress - Folhapress

A grave crise democrática em todo o mundo não é causa nem consequência de nenhuma mudança na natureza da internet, que segue a mesma em sua estrutura de funcionamento. A opacidade, a concentração de mercado, a exclusão e a desordem informacional já existiam, inclusive "fora da rede". A economia da atenção online agrava a perversidade, mas opera só na superficial camada de aplicações onde podemos acessar serviços via web ou aplicativos: buscadores, redes sociais, mensageiros, tocadores de mídia etc. Os abusos no uso da tecnologia não explicam sozinhos o preocupante retrocesso.

O mesmo se aplica ao regime de responsabilidade civil criado pelo Marco Civil da Internet (MCI). As decisões automatizadas por algoritmos na distribuição de conteúdo são perigosas e demandam novas normas, mas não devemos jogar fora o bebê com a água suja do banho. Abrir mão das premissas do marco civil seria consertar um texto onde ele não está quebrado.

A desinformação demanda enfrentamento. Nem mesmo o TSE revisou a lei para se ativar na defesa da democracia. A portaria prevendo remoção sumária de conteúdos e perfis também exigiu ordem judicial. E se o MCI não foi pensado para evitar atividades golpistas, porque lhe cobrar esse efeito? Seria reformar a casa a fim de reduzir o trânsito urbano.

O MCI foi iniciado com o presidente Lula, mas a maior parte das acirradas disputas se deu no governo Dilma: o consenso interno e o envio do projeto de lei em 2011; a vitória sobre Eduardo Cunha e a aprovação no Congresso em 2014; o decreto presidencial que regulamentou a lei às vésperas do golpe em 2016. Uma trajetória de amadurecimento do conteúdo do texto e da construção participativa que justifica o apelido de Constituição da Internet. Com quase nove anos, deve-se valorizar esse marco cidadão da regulação do uso da rede em sua origem e pioneirismo mundial.

As organizações da sociedade civil se veem instadas a apagar um incêndio atrás do outro, a carregar a memória dos debates e ainda serem tachadas pejorativamente de "defensoras da lei a qualquer custo". Na verdade, em abril de 2022, a Coalizão Direitos na Rede lançou campanha pela regulação da atuação das plataformas de internet no país com mais transparência, mais direitos e mais democracia.

As novas tecnologias invasivas e o ataque às instituições autorizam aprimorar e fortalecer o marco civil. Mas a hora é de respeito ao processo multissetorial de criação e suas sofisticadas balizas jurídicas à tecnologia digital. Na contramão, vemos surgir "inventores da roda", em uma disputa vazia por protagonismo (até mesmo no governo federal) que só atrapalha a maturação do tema.

Os desafios atuais e futuros exigem novos passos, mas sem apagar nossa trajetória. Uma revisão geral seria aceitar um presente de grego. E da pança desse "cavalo de batalha" surgirão novos e crescentes riscos à democracia, que podem resgatar antigos inimigos.

Genro e Abramovay aludem ainda ao mito da Hidra. Na mitologia grega, esse trabalho de Hércules ensina prudência e sabedoria: trabalhar em equipe, em vez de atacar sozinho as "cabeças" que se duplicam quando cortadas. Duvidemos de visões que parecem deter gabarito, receita de bolo ou bala de prata para resolver a desinformação em massa sem arriscar a liberdade de expressão. Nenhum país resolveu esse problema. Nossas melhores experiências democráticas se fizeram com diálogo aberto, público, transparente e participativo. O MCI não é inimigo nem obstáculo, mas uma ferramenta democrática na defesa de nossa autonomia comunicativa.

TENDÊNCIAS / DEBATES
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