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Lenio Streck

O Brasil deve endurecer as penas para crimes contra a democracia? SIM

Nosso dever é protegê-la: golpes e correlatos não são furtos de supermercado

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Lenio Streck

Advogado, jurista e professor, é doutor em direito e autor de “Jurisdição Constitucional” (ed. Forense), entre outros

O governo federal pretende alterar a Lei de Defesa do Estado Democrático. Lei que está funcionando. Os golpistas de 8 de janeiro estão sentindo o seu peso. Daí a pergunta: é preciso endurecer a lei? A resposta não é simples.

Há muito afirmo que direito penal não resolve problemas; ele é, em si, um problema. Todavia, a frase é incompleta. Afinal, como conter a violência física e simbólica? Não se inventou ainda um modo de dispensar a punição. Hobbes tinha sua boa dose de razão.

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Vândalos golpistas invadem a praça dos Três Poderes e depredam palácios da República - Gabriela Biló - 8.jan.23/Folhapress - Folhapress

Contra a barbárie, a civilização. Não devemos ter timidez para falar do tema. Os alemães, picados por cobra, têm medo de linguiça. Lá existe o conceito de democracia defensiva ("wehrhafte Demokratie"), pela qual o Estado democrático pode e deve se defender de seus inimigos. Do contrário, o sistema autoimplode. Como sobrevive a democracia que permite as condições para destrui-la? Criticar a democracia é uma coisa; aboli-la é outra. Em abril de 2021, a Alemanha aumentou os rigores da lei.

Por aqui, vítimas da peçonha em 1964, curamo-nos e quase fomos picados de novo em 2023. Se não aprende(r)mos nada com isso, teremos como futuro um imenso passado.

O contexto do projeto é o passado recente. O mote principal é o Supremo Tribunal Federal atacado, ele e seus ministros, que tiveram de lançar mão da autodefesa de seu regimento interno. Afinal, se o STF está em risco, a própria democracia está. Fazendo isso, o governo abrange mais de um alvo.

Há mais. Se o ponto fulcral é uma "wehrhafte Demokratie" à brasileira, não é demais sugerir, também, que as autoridades (ministros etc.) façam autocontenção. Se é possível —e necessário— fazer uma lei para proteger a democracia contra os inimigos, mais difícil é fazer leis que evitem o excesso de empoderamento do Judiciário (e do Ministério Público), hoje visivelmente invadindo a esfera do Legislativo. Esses fatores fragilizam aquilo que devemos proteger: a democracia. E precisamos falar —muito— sobre o papel de cada um dos Poderes. Mesmo que a conversa seja incômoda.

Desnecessário analisar, aqui, o projeto, que tem muito mais pontos positivos que negativos, como a gradação de penas a depender da participação nos crimes. Mas não é bom o poder de ofício do juiz.

De todo modo, importa mais o aspecto simbólico do projeto, que é o de chamar a atenção para esse outro desconhecido e descuidado direito: o direito fundamental ao regime democrático.

Numa frase: golpe de Estado e correlatos não são furtos de supermercado. Ou coisas de punguistas. Sejamos coerentes. Por vezes vibra-se até com o STF criando tipos penais e com o aumento de penas em vários crimes. Afinal, o direito penal serve para quê, num país em que furto qualificado dá pena maior do que lesão grave? O que é, afinal, o direito penal, se sonegar é "menos grave" que furtar? Se pouco nos insurgimos com o uso do direito penal de forma tão desproporcional, por qual razão seria "punitivismo" usá-lo para proteger a democracia?

Aumentar a proteção da democracia deveria assustar só os não democratas. Bons motoristas não têm medo da Lei Seca. Por isso não concordo com a retranca de "que amanhã a lei será usada contra nós". Nós quem?

Se não tivermos a capacidade jus-técnico-política de fazer uma lei que defenda a democracia e, ao mesmo tempo, não seja uma arma contra os democratas, fracassamos. A lei atual, por exemplo, não oferece esse risco. Por que uma mais dura e mais completa seria um risco?

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