Em botecos de Belo Horizonte, comidas banais atingem ápice da excelência gastronômica

Capital mineira usa fórmula 'pinga, pururuca e prosa' para conquistar com almôndega e até bolinho de arroz

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Estufa de alimentos do bar Bolota's Alexandre Rezende/Folhapress

São Paulo e Belo Horizonte

Beagá, ou Belzonte, é a capital brasileira dos botecos. Pelo menos é o que dizem os mineiros —e não vejo motivos para duvidar deles. Uma vez em Belo Horizonte, o visitante deve reservar pelo menos um dia para ir de bar em bar, petiscar e biritar.

Se boteco é assunto sério em Minas, eu precisava dar um lustre profissional à bebedeira. Então acionei o Nenel, celebridade da boêmia belo-horizontina, dono do perfil de Instagram Baixa Gastronomia, com 179 mil seguidores. Consultoria profissional.

O prato Prexeca, do bar Bolota's, em Belo Horizonte - Alexandre Rezende/Folhapress

Nosso percurso começaria às 11h de uma sexta-feira. Pela manhã, pois profissional. Até o início da noite, passaríamos por quatro botecos que representam diferentes aspectos da cultura de bar da cidade.

Parece pouco, mas não é. O bebedor profissional precisa se aclimatar, sentir o espírito do bar —algo impossível se você entorna um copo, paga a conta e vaza. E, como eu descobriria naquela tarde com o Nenel, para o mineiro a conversa é tão importante quanto a bebida e a comida. É a trinca PPP: pinga, pururuca e prosa.

A prosa fez falta na véspera, quando fui conhecer o Café Palhares. É um ponto minúsculo, apenas um balcão em "U", sem mesas, desde 1938 no centro de Beagá, e famoso por um só prato.

O prato é conhecido por kaol, que vem a ser uma sigla. "A" de arroz, "o" de ovo, "l" de linguiça. O "k" é de "kachaça", mas a "kaninha" precisa ser pedida à parte. O PF leva ainda farofa de feijão, torresmo e uma conchada de molho de tomate. E "kouve". A linguiça pode ser trocada por outras carnes, como o pernil de porco e a língua de boi.

Apostei na receita original, acompanhada de um chopinho e uma cachacinha. Boa, mas longe de ser espetacular.

O Palhares é um boteco de altíssima rotatividade. Você se aboleta, pede, recebe em a comida em dois minutos, engole, paga e vai embora, pois tem gente em pé, lá fora, de olho no seu banquinho. Se for tentar conversar, cospe farofa nos outros. É perfeito para um almoço que precisa ser rápido, mas um esquema meio nervoso para quem está a passeio.

O dia seguinte seria intenso, porém mais calmo. Encontrei-me com Nenel no Quintal do Degas, boteco improvisado numa favela do bairro Lagoinha, perto do centro.

Foi na Lagoinha que se assentaram os operários contratados para construir a capital mineira, cidade planejada e concluída no final do século 19. Misturaram-se imigrantes italianos com gente vinda de todas as regiões do estado, e a Lagoinha se tornou uma zona de forte vocação boêmia.

Ainda hoje os belo-horizontinos chamam de lagoinha o copo americano, baixo e canelado, acessório imprescindível pro bebedor de cerveja raiz. O nome pegou porque, quando o copo surgiu, seu único distribuidor ficava naquele bairro.

A Lagoinha decaiu após a construção, nos anos 1960, de um complexo de viadutos que demoliu boa parte do casario. O "coliseu" um dos apelidos que o figuraça Degas dá ao próprio bar— não é fácil de achar. Você desce do carro em frente a um beco e, deve caminhar e perguntar até que alguém saiba a localização do boteco.

Apesar dos pequenos perrengues, é um lugar seguro e que atrai uma curiosa mistura de alternativos e jogadores de futebol. Os boleiros batem ponto porque Degas —apelido de Leonardo Gonçalves dos Reis— é grande amigo do ex-lateral atleticano Dedê, que o levou para morar na Alemanha quando foi contratado pelo Dortmund Borussia.

Quando cheguei, por sorte, os quatro rottweilers de Degas estavam presos. Como se pode ver no Instagram do bar, os cães também costumam se divertir na piscina de armar que ele deixa à disposição dos clientes.

Nenel já tomava uma cerveja na mesa de madeira, que na verdade é um desses carretéis gigantes de transportar fios elétricos. Degas se juntou a nós e começou a contar causos hilários dos tempos de Alemanha. Depois chamou Priscila, sua irmã.

O que Degas tem de gogó, Priscila tem de talento culinário. Ela nos trouxe um fabuloso torresmo de rolo (R$ 30), apelidado de "croc", quibes saborosos (R$ 40, dez unidades) e uma porção de camarõezinhos em molho ácido e picante (R$ 25), que Nenel batizou de "caribenhos".

De lá fomos —Degas inclusive— para o bairro Serra, região abastada e adjacente à Savassi, mais famosa para quem é de fora. No bar Estabelecimento, a especialidade é o bolinho de arroz. Calma, não é qualquer bolinho de arroz.

O proprietário do estabelecimento, Olivio Cardoso Filho —ou melhor, —Livinho, nos contou do trabalho que teve para treinar a equipe de cozinha até que os bolinhos saíssem de lá idênticos aos que sua mãe, dona Lurdinha, fazia em casa.

São três receitas, todas por R$ 42 a porção de oito unidades. A versão clássica leva queijo canastra e outros breguetes. Impecável. As outras duas são incrementadas com jiló e com taioba, duas delícias que não se acham com facilidade em São Paulo.

Para o terceiro pit stop, dirigimo-nos, já sem o Degas, para a bucólica Santa Tereza. A mercearia do Nivaldo —nome oficial: Mercadinho Bicalho, sobrenome do —Nivas fica numa praça com ares de interior. É uma venda das antigas, com caixotes de garrafas por todos os cantos, onde você pode adquirir coisas como pilhas e lâminas de barbear.

O Nenel me levou ao Nivaldo para comer a almôndega (R$ 20). No singular. Apenas uma bola de carne, muito bem servida, banhada em molho de tomate, com queijo ralado, fubá torrado e batata cozida. Assim como o bolinho de arroz do Livinho, a almôndega do Nivas é uma coisa de outro mundo.

Voltamos à Serra quando a tarde já caía e as mesas externas do Bolota’s, fenômeno de popularidade, já estavam quase todas ocupadas para a happy hour. Leonardo Ribeiro, o Bolota, é um tipo extrovertido, engraçado, simpático e, logicamente, gordinho. Seus olhos saltam das órbitas quando fica animado na conversa.

Leonardo Bolota, dono do bar Bolota's - Alexandre Rezende/Folhapress

O petisco mais famoso do bar, a prexeca (R$ 9,90), consiste em um disco de carne de boi, carne de porco fresca e bacon, empanado, frito e servido com um gomo de limão. Tempero muito bom, mas àquela altura a cerveja e os outros rangos já prejudicavam o juízo.

Nenel saiu para gravar seu programa de rádio e me deixou proseando com o Bolota. Ele falou de sua intenção de abrir um bar em São Paulo. Perguntou se Interlagos era uma boa localização, e eu dei mil argumentos furados para dizer que não, era um péssimo bairro.

Era só conversa mole para convencê-lo de que boa mesmo é a zona oeste. Convenientemente perto da minha casa. Imagina só, que luxo, um boteco de BH logo ali na esquina?

SERVIÇO

Café Palhares. R. dos Tupinambás, 638, Centro. Tel.: (31) 3201-1841

Quintal do Degas. R. 15 de Abril, 75, Lagoinha Tel.: (31) 98889-9681

Estabelecimento. R. Monte Alegre, 160, Serra. Tel.: (31) 3223-2124

Mercearia do Nivaldo/Mercadinho Bicalho. R. Mármore, 556, Santa Tereza. Tel.: (31) 3482-2357

Bolota’s Serra. R. Capivari, 439, Serra. Tel.: (31) 98552-1011

O jornalista viajou a convite da Vale

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