Cozinha afetiva sobrevive a modas como o TikTok e os reality shows culinários

Comida que dialoga com a memória é refúgio de quem não quer explorar novos sabores o tempo todo

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São Paulo

"Não estou interessada na alta gastronomia." É com essa premissa que a chef Gabriela Barretto abre seu livro, "Como Cozinhar sua Preguiça" (ed. Melhoramentos), e elabora o menu do restaurante paulistano Chou. Massas com molhos cremosos são servidas em tigelas ou na frigideira. O porco, cozido lentamente, vai ao prato com uma porção generosa de polenta.

"Tive uma infância em um ambiente idílico e tento reconstruir esse lugar na minha comida. O sabor do Chou é rústico, traz aconchego. Ninguém se distrai com a técnica."

Barretto é um dos expoentes contemporâneos de uma escola gastronômica, a chamada cozinha afetiva, que demonstra longevidade em meio a modas e tendências.

Porco cozido com polenta, criação da chef Gabriela Barretto servida no restaurante Chou, em São Paulo
Porco cozido com polenta, criação da chef Gabriela Barretto servida no restaurante Chou, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Resistiu à chegada da gastronomia molecular, conhecida por suas esferas e espumas, e dos longos menus-degustação. Não perde o vigor nem mesmo na era dos reality shows e dos vídeos do TikTok, que fazem qualquer preparo parecer instantâneo.

Para construir a base dessa cozinha, chefs como Carla Pernambuco, Mara Salles e Paola Carosella cozinham amparadas em memórias e dialogam com o público muito além do fogão. Nos registros de suas receitas, impressos ou digitais, buscam fisgar o comensal pelas emoções.

A linguagem afetuosa, que está no centro da cozinha afetiva, virou até um nicho de negócio. "O grau artesanal e a hospitalidade são grandes tendências do setor. Ao contar histórias sobre seus produtos, os fabricantes apelam à nostalgia do consumidor e atenuam o estigma do produto industrializado", afirma Simone Galante, da consultoria Galunion, especializada em negócios de alimentação.

A comida afetiva representa uma espécie de descanso, segundo Paula Pinto e Silva, doutora em antropologia social pela USP. "Depois de tanto valorizar o exótico, as pessoas passaram a procurar uma comida que não precisa ser decifrada. A comida de alma."

Não por coincidência, "comida de alma" era um termo que a cronista e banqueteira Nina Horta (1939-2019) costumava empregar em suas colunas nesta Folha. Em vez de privilegiar apenas receitas, ela usava o seu espaço no jornal para descrever as emoções despertadas pela comida.

Os trabalhos de Horta sobre comer e cozinhar, ricos em onomatopeias, metáforas e interjeições, ajudaram a forjar um estilo que transporta o público para um universo caseiro, distante dos salões cintilantes dos restaurantes.

A autora assumia uma "implicância solene" com o esnobismo. Criticava estabelecimentos que serviam musses de kiwi e tiramissu, mas não ofereciam um bom sagu. Sua primeira coletânea de crônicas, "Não É Sopa", de 1994, foi relançada pela Companhia das Letras em 2020.

A escritora também é tema do curso Nina Horta – Literatura de Sensações, já na sexta edição, ministrado pela jornalista Luiza Fecarotta. O próximo, já com fila de espera, acontece na escola Wilma Kövesi de Cozinha, em outubro.

"Ela criou uma nova interpretação da comida, inaugurando uma safra de textos gastronômicos que nem precisavam estar acompanhados das receitas", afirma Fecarotta.

Autora de livros que misturam receitas e memórias, entre eles "Cozinhando para Amigos" (ed. DBA), a chef Heloísa Bacellar vê a culinarista Bettina Orrico e a apresentadora Palmirinha, ambas mortas neste ano, como fontes de inspiração para sua cozinha.

No portal nacozinhadahelo.com.br, a chef procura ensinar receitas como o bolinho de carne "delicioso", o arroz doce "de casa de avó" e o bolo de amendoim "daqui da roça".

"Tenho recortes de revista colados nos meus cadernos. Bettina Orrico dava às receitas esse ar de comida da gente. E a quantidade de gente que Palmirinha motivou a cozinhar? Elas duas, assim como Nina Horta, me ajudaram a entender que o caminho que escolhi não era maluco."

O que faz a relação afetuosa com a comida seguir um tema tão atual? Para a antropóloga Paula Pinto e Silva, uma geração inteira de mulheres rompeu com a cozinha doméstica no século 20 para conquistar o mercado de trabalho —e são os seus filhos que hoje buscam restaurar essa proximidade.

"Cortamos um vínculo que sempre existiu. De repente, não tínhamos mais avós e mães cozinhando, o que quebrou uma das funções da comida, que é garantir a identidade", afirma. "Ninguém quer explorar sabores novos o tempo todo, e quanto mais difícil o contexto socioeconômico e cultural, mais a gente busca essa comida conhecida."

Paulista de Campinas, Jane Lutti promovia jantares a portas fechadas em sua casa, em 2012, quando decidiu mergulhar no estudo da cozinha afetiva. Aproveitava encontros para ouvir histórias que sempre relacionavam sabores e boas lembranças. Suas descobertas já viraram dois livros.

"O primeiro sistematiza o conceito numa linguagem bem democrática. Tenho conquistado até leitores que admitem não ter o hábito de ler. O segundo é uma coletânea de receitas com suas histórias. O processo de escolha foi terapêutico", ela diz.

Lutti discorda da ideia de que a comida afetiva tenha de envolver pratos de qualidade excepcional. Afirma que detestava a comida do pai, cheia de temperos industrializados, e só compreendeu a carga emocional daqueles sabores após sua morte, em 2014.

"Perdi minha mãe aos 3 anos e meu pai ficou sozinho, com oito filhos. De manhã, fazia um sanduíche com pão amanhecido, uma linguiça duvidosa e tomate murcho. Hoje, sinto falta daquele sabor. Era sua forma de demonstrar amor."

Escrita e Comida: Nina Horta – Literatura de Sensações
Em quatro aulas, a jornalista especializada em gastronomia Luiza Fecarotta apresenta oficinas de escrita e degustações com as receitas de Nina Horta, mais importante cronista da área no país.
Escola Wilma Kövesi de Cozinha. Rua Cristiano Viana, 224, Pinheiros, São Paulo.Valor R$ 1.480. Quando: outubro. Contato: (11) 999731775

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