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Por que uma Suprema Corte de homens garantiu o aborto nos EUA em 1973

Para entender vitória por 7 x 2, é preciso olhar o passado sem as lentes da guerra cultural e da polarização de hoje

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Manifestação a favor do direito ao aborto em Washington, em resposta ao vazamento de rascunho que indicou que a Suprema Corte reverteria a decisão do caso Roe vs. Wade Jose Luis Magana - 14.mai.22/AFP

Lúcia Guimarães

Jornalista, vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo

[RESUMO] Em 1973, ano em que uma Suprema Corte dominada por homens reconheceu o direito ao aborto nos EUA, agora revogado, a questão tinha menos destaque no movimento feminista e era vista sob o prisma da saúde pública. Ao contrário de Trump, o republicano Nixon não se engajou em uma ofensiva antiaborto, e a decisão favorável no caso Roe vs. Wade não despertou conflitos como hoje.

Em 1973, o âncora Walter Cronkite era a figura paterna da TV americana, quando os Estados Unidos só tinham três redes nacionais abertas, e o cabo chegava a uma ínfima minoria de domicílios. Em 22 de janeiro daquele ano, Cronkite abriu o telejornal da CBS, o mais assistido do país, anunciando, sem emoção ou comentário: "Em uma decisão histórica, a Suprema Corte legalizou hoje o aborto".

O âncora citou os dois casos que tinham chegado ao tribunal e explicou a opinião da maioria, baseada no direito da mulher à privacidade: "A decisão de terminar uma gravidez, durante o primeiro trimestre, pertence à mulher e seu médico, não ao governo".

Retrato de membros da Suprema Corte americana em 1967. De pé, da esq. para dir: Abe Fortas, Potter Stewart, Byron White e Thurgood Marshall. Sentados: John Marshall Harlan II, Hugo Black, Earl Warren, William O. Douglas e William J. Brennan Jr. - 23.out.67/AFP

Em seguida, entrou uma reportagem igualmente serena sobre o processo, conhecido como Roe vs. Wade, com visões de especialistas, críticas de um representante da Igreja Católica e o depoimento, de costas, para proteger sua identidade, de uma das duas mulheres cujo caso foi examinado pelos nove juízes.

Um imprevisto, contudo, distraiu o país naquela noite. No meio do telejornal, entregaram um telefone a Cronkite. Ele pediu que o interlocutor continuasse na linha para anunciar que o ex-presidente Lyndon Johnson havia morrido em um voo a caminho de um hospital no Texas.

O infarto de Johnson derrubou Roe vs. Wade do topo das manchetes, mas o destaque dado pela imprensa mostrava um país diferente do que recebeu a decisão de junho passado, que negou o direito constitucional e permitiu aos estados criminalizar o aborto. O jornal The New York Times de 23 de janeiro trazia dois depoimentos críticos curtos, do arcebispo da Filadélfia e do cardeal presidente da Conferência Nacional dos Bispos americanos, que escreveu sobre a santidade da vida.

No mesmo janeiro de 1973, teve início, no dia 11, o julgamento dos arrombadores da sede do Partido Democrata, no complexo de Watergate, o escândalo que derrubaria Richard Nixon no ano seguinte. No dia 27, Henry Kissinger, então assessor de Segurança Nacional, assinou o acordo para encerrar a Guerra do Vietnã, que alimentava convulsões sociais desde 1967.

O presidente Richard Nixon, um devoto protestante quaker, era publicamente contra a legalização do aborto, mas não se engajou em nenhum ativismo político. Afinal, entre 7 dos 9 juízes que votaram a favor de Roe vs. Wade, três eram conservadores nomeados por ele.

Só em 2009, com a liberação de um novo lote das gravações secretas da Casa Branca, descobrimos que Nixon manifestava ambivalência em relação ao aborto. Ele temia que a liberação levasse à promiscuidade e à dissolução da família. Em linguagem racista crua típica, ele diz a um assessor: "Há casos em que abortos são necessários, eu sei, você sabe, quando é um negro e uma branca. Ou em casos de estupro".

Como as mulheres americanas conquistaram o direito ao aborto com a ajuda de seis juízes brancos e um negro, em uma corte em que a primeira mulher só foi admitida na década seguinte, em 1981? Para entender a diferença da corte atual, que votou contra, com quatro mulheres —entre elas, uma negra e uma latina—, é preciso olhar para 1973 sem a lente das guerras culturais do presente.

O aborto, na década de 1970, não tinha o mesmo destaque no movimento feminista, mais concentrado em questões como a igualdade no mercado de trabalho. O establishment médico americano apoiava a descriminalização, considerando o procedimento uma questão de saúde pública. Médicos e pacientes não queriam se sujeitar a uma teia de legislações estaduais punitivas e enfrentar processos criminais.

O julgamento favorável do caso Roe vs. Wade não era tido como certo. O título do processo faz referência ao pseudônimo Jane Roe, de uma mulher grávida que desafiou o promotor Henry Wade, no Texas, onde a prática era ilegal.

"Entre os liberais, como eu, havia um temor de que não haveria maioria", disse à Folha George Frampton, então assessor de 28 anos do juiz Harry Blackmun, que, sendo discreto, preferiu não confirmar a reputação de ter sido o principal redator da sentença que legalizou o aborto.

Nixon fez campanha para o primeiro mandato, em 1968, prometendo juízes alinhados a uma interpretação estrita da Constituição, o oposto do ativismo judicial. "Juiz interpreta a lei, não cria legislação", dizia.

O problema é que a Constituição, de 1789, não se refere a mulheres ou negros e não garante a igualdade de direitos a todos os americanos —e ainda determina que "quem não é livre" (os escravizados) seja contado como três quintos de um indivíduo para determinar a proporção da representação no Congresso.

Nixon começou a cumprir as promessas de campanha ao nomear como presidente da Suprema Corte o conservador Warren Burger. Ele indicou seis juízes para quatro das vagas abertas durante sua Presidência.

Aqui, outro exemplo das nuances políticas de meio século atrás. O presidente não conseguiu aprovar, em 1971, sua indicada, a juíza californiana Mildred Lillie, que poderia ter sido a primeira mulher da corte. Lillie foi escorraçada como inexperiente pela associação de advogados americanos, cujo selo de aprovação, na época, era considerado crucial para juízes passarem pela sabatina do Senado.

"Ela era de direita e estúpida", disse o jurista Universidade Harvard Laurence Tribe, professor de gerações de juízes, entre eles, dois da Suprema Corte (John Roberts e Elena Kagan), e de Barack Obama. Em uma troca de emails com a Folha, Tribe confirma que foi interpelado pelo FBI sob Nixon por se opor à nomeação de Lillie.

Roe vs. Wade teve início em 1970, mesmo ano em que Nixon decidiu indicar para corte o juiz Harry Blackmun, amigo e conterrâneo de Minnesota de Warren Burger. O papel de relator da decisão sobre o aborto coube a Blackmun, que atendia a todos os clichês do homem típico do Meio Oeste: modesto, afável e avesso a ser o centro das atenções.

Frampton era abertamente liberal, mas não deixou passar a oportunidade de se tornar assessor jurídico de Blackmun. "Ele era uma pessoa cheia de consideração, estava inseguro e se sentia meio fora de lugar na corte", lembra ele, hoje um proeminente defensor de causas ambientais. Blackmun, um conservador moderado, não fazia proselitismo ideológico. O primeiro rascunho da opinião do juiz sobre Roe vs. Wade saiu em 1972 e foi criticado, taxado de incompleto e mal-escrito.

A sentença sustentou a ideia de ancorar o aborto na 14ª emenda da Constituição, que protege o direito à privacidade, em contraste com os argumentos usados agora pelos juízes ultradireitistas indicados por Donald Trump, que classificam a escolha como um artifício.

"O aborto não era o foco de Nixon nas escolhas que fez para a corte", diz o historiador Kevin McMahon, autor de "Nixon’s Court: His Challenge to Judicial Liberalism and Its Political Consequences" (a corte de Nixon: seu desafio ao liberalismo judicial e suas consequências políticas).

McMahon diz acreditar que Nixon foi bem-sucedido em lançar uma contrarrevolução conservadora que seria consolidada por Ronald Reagan, apesar de Roe vs. Wade e da decisão de julho de 1974 que desferiu um golpe mortal contra sua Presidência ao lhe negar o privilégio de manter as gravações secretas fora do alcance do promotor especial do caso Watergate.

"Ele pensava mais do ponto de vista eleitoral que do ideológico. Queria reverter o transporte de estudantes negros de ônibus, uma das iniciativas do fim da segregação racial, e queria explorar o medo do crime entre os brancos."

O historiador afirma que a liberação do aborto era parte do zigue-zague ideológico da era Nixon, que precisava enfrentar o colérico ultraconservador George Wallace na campanha de 1972. Além disso, ao manter distância, ele podia responsabilizar a Suprema Corte pela legalização do aborto.

Um outro termômetro da falta de drama, em 1973, pode ser encontrado na edição da revista Ms., fundada pela líder feminista Gloria Steinem.

O número de março trazia um artigo intitulado "Nós fizemos abortos". A autora, Barbaralee Diamonstein, convenceu 53 mulheres americanas —entre elas figuras públicas como a hoje lendária tenista Billie Jean King, as escritoras Anaïs Nin e Nora Ephron, e a historiadora Barbara Tuchman— a assinar uma petição revelando que tinham interrompido a gravidez e defendendo o fim do estigma sobre o aborto em um país onde estimativas indicavam que uma em quatro mulheres já havia abortado, legalmente ou não.

"A reação foi tranquila, não fomos alvo de protestos," lembrou, em entrevista por telefone à Folha, Barbaralee Diamonstein-Spielvogel, 90. Quando escreveu o artigo declarando ter feito um aborto, ela já tinha sido nomeada a primeira secretária de Cultura da Prefeitura de Nova York.

A autora confirma que o debate sobre o aborto tinha ênfase em saúde pública e lamenta que o movimento antiaborto contemporâneo, que adota a expressão direito à vida, não se interesse pela saúde e o bem-estar das crianças fora do útero.

O país que legalizou o aborto graças a uma maioria de homens brancos era mais conservador que o país cujo Judiciário federal liberou a criminalização do aborto nos estados, com a Suprema Corte mais diversa de sua história. Como explicar isso? ​

Em 1973, os evangélicos brancos não eram a força política prodigiosa que se tornaram a partir dos anos 1980. A "maioria silenciosa" —termo cunhado por Nixon para descrever vastos segmentos da população que não se manifestavam politicamente, em oposição aos que protestavam contra a guerra no Vietnã— não se aplica mais.

Os EUA são governados hoje por uma minoria ruidosa e extremista, em razão, em parte, de distorções antidemocráticas no Senado, onde os 50 senadores democratas representam 42 milhões de pessoas a mais que os 50 senadores republicanos, de estados mais rurais.

Em 1973, não havia o obscuro e bem-financiado Conselho de Política Nacional, que, no verão de 2016, decidiu colocar dinheiro e uma vasta estrutura política nacional para eleger um empresário nova-iorquino devasso, acusado de assédio sexual e de estupro. O preço? Donald Trump só indicaria juízes para tribunais federais aprovados por conservadores religiosos.

A direita religiosa americana sabe que não pode chegar ao poder pelas urnas. Neste país de 330 milhões, cerca de 70% da população apoia o direito ao aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo, e dois terços querem controle do porte de armas para prevenir massacres.

Por paradoxal que possa parecer, à frente desse retrocesso está Clarence Thomas, o mais antigo integrante da Suprema Corte, um negro que tinha um pôster de Malcolm X no dormitório em seus tempos de faculdade.

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