Caso das 10 mil investigadas por aborto ainda marca debate no Brasil

Julgamento do STF que começou com voto favorável à descriminalização coloca país sob holofotes internacionais

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Carolina Moraes

Repórter e apresentadora do podcast Caso das 10 Mil

Angela Boldrini
Angela Boldrini

Repórter da editoria de Podcasts, apresentou os programas Sufrágio e Café da Manhã. Está na Folha desde 2014 e escreve sobre gênero e política.

[RESUMO] Caso de clínica de aborto em Campo Grande (MS) contado em podcast da Folha, em que 10 mil mulheres foram investigadas em 2007, reacendeu o debate sobre a descriminalização da prática no país, fomentou grupos pró e contra a interrupção da gravidez e espelhou a posição da Justiça e da classe política nesse tema. Discussão volta agora à tona com abertura de julgamento no STF.

Há 16 anos, a investigação sobre uma clínica em Campo Grande (MS) desencadeou o maior processo criminal relacionado a aborto no Brasil. Políticos de Brasília se mobilizaram em torno da história, milhares de mulheres foram processadas e tiveram seus dados expostos durante a investigação.

O caso se tornou um marco no debate da criminalização da interrupção da gravidez. Um novo capítulo histórico dessa discussão começou neste mês, com a abertura do julgamento no Supremo Tribunal Federal da descriminalização do procedimento até a 12ª semana de gestação.

Colagem de Manuela Eichner para a capa da Ilustríssima sobre aborto
Colagem de Manuela Eichner - Reprodução

De 1989 a 2007, milhares de mulheres passaram pela Clínica de Planejamento Familiar da médica Neide Mota Machado para realizar aborto, procedimento que é comum no Brasil. A Pesquisa Nacional de Aborto de 2021, principal referência sobre o tema, mostra que 1 em cada 7 mulheres com menos de 40 anos já interrompeu pelo menos uma gravidez.

O levantamento, coordenado por Débora Diniz, professora de direito da UnB (Universidade de Brasília) e pesquisadora visitante da Universidade Brown, nos EUA, ouviu 2.000 mulheres em 125 municípios.

Essas mulheres, em sua maioria, buscam a interrupção da gravidez no mercado clandestino. No Brasil, o aborto só está previsto na lei em casos de estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto.

Em Campo Grande, a médica Neide Mota realizava os procedimentos na clandestinidade, mas não em segredo. A anestesista era uma figura conhecida da alta sociedade da cidade, e já tinha sido processada duas vezes pela prática de abortos —os dois casos, em 1994 e 1998, terminaram sendo arquivados.

Até que, no dia 10 de abril de 2007, a TV Globo exibiu em rede nacional uma reportagem feita com "câmera escondida". Os repórteres foram à clínica, disseram estar em busca de um aborto e filmaram o atendimento inicial. O vídeo, que foi ao ar no Jornal da Globo, desencadeou uma operação policial.

Foram apreendidos na clínica 9.896 prontuários com detalhes a respeito das pacientes, da motivação para o aborto, do procedimento utilizado para interromper a gravidez. As fichas embasaram uma investigação que levou as funcionárias da clínica a júri popular e à abertura de processo contra mais de mil pacientes.

A história da derrocada dessa clínica é contada no podcast Caso das 10 Mil, série da Folha que explica como o aborto foi parar no centro de um debate político. O último episódio do podcast será publicado nesta quarta-feira (4). Procurada pela reportagem, a Globo não quis comentar o caso.

Nunca tantas pessoas foram processadas por aborto como nesse caso de Campo Grande. As 10 mil mulheres mencionadas nos documentos da clínica representavam cerca de 40% das encarceradas no país em 2007. Pela proporção que tomou, o caso gerou questionamentos sobre a criminalização do procedimento.

"Se a situação de Campo Grande fosse projetada para todo o país, as polícias judiciárias não fariam outra coisa a não ser produzir inquérito contra mulheres pela suposta prática do crime de aborto", afirmou a advogada Carmen Campos, durante uma sessão da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados que tratou do caso, em 2008.

Ela foi uma das advogadas e ativistas que acompanharam o processo e apontaram arbitrariedades. A Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto, que coordena dezenas de organizações sociais, também foi formada por causa deste caso.

A história de Campo Grande se tornou também um marco porque espelha a atuação do Judiciário brasileiro em casos de aborto e, principalmente, como esse tema foi capturado pela política brasileira. O embate entre os polos pró e contra a descriminalização ganhou tração nos anos 2000.

Em 2007, a discussão estava particularmente agitada. Portugal tinha acabado de sancionar uma lei que descriminalizava a interrupção da gravidez. No Brasil, o então ministro da Saúde de Lula, José Gomes Temporão, falou publicamente que o aborto era uma questão de saúde pública e defendeu um plebiscito sobre o tema. Não demorou para vir uma resposta da ala conservadora de Brasília.

No dia em que a reportagem sobre a clínica de Campo Grande foi ao ar, 10 de abril de 2007, a Folha publicou um artigo de opinião intitulado "Por um Brasil sem aborto", assinado pelo criador da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e Contra o Aborto, o ex-deputado federal do PT da Bahia Luiz Bassuma.

Bassuma protagonizou uma disputa no Congresso Nacional dois anos antes, em torno do projeto de lei 1135, que propunha a descriminalização do aborto até a 12ª semana.

O Brasil vinha discutindo pontualmente o aborto desde o fim da ditadura militar, e o projeto datava de 1991. O primeiro governo Lula (PT), iniciado em 2003, começou a fazer mudanças, como a assinatura do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, que previa revisar a legislação punitiva do aborto.

Apesar das pressões contrárias, sobretudo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), formou-se uma comissão tripartite que gerou um anteprojeto de lei. Essa proposta pretendia retirar do Código Penal os artigos 124 e 126, que tratam da punição criminal do aborto. Ela foi incorporada ao PL 1135 de 1991, e chegou a entrar na pauta da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara em 2005.

A possibilidade de votação fez com que deputados como Bassuma, que é espírita, se organizassem em uma frente parlamentar. O então petista se tornou o presidente dessa bancada —e conseguiu adiar para sempre a apreciação do projeto. Esse episódio foi o mais perto que o Brasil já chegou de descriminalizar o aborto pela via Legislativa.

No texto publicado na Folha, Bassuma afirmou aspirar "que nosso país seja referência mundial na ‘dignificação da vida’ em todos os seus aspectos". "Mas tudo começa quando um espermatozoide fecunda um óvulo, dando início à formação de um novo ser humano, que precisa ter garantido o primeiro e o mais importante de todos os direitos: o direito de nascer".

É com essa tese que o então deputado apresentou em março de 2007 o Estatuto do Nascituro, projeto de lei que pretende colocar na legislação os direitos do feto desde a concepção e proibir totalmente o aborto.

Hoje, não apenas a descriminalização como um todo é alvo de debate. O acesso à saúde nos casos previstos na lei também está em disputa.

A aprovação do estatuto ainda é a prioridade da bancada antiaborto. Em 2022, parlamentares chegaram perto de conseguir uma vitória na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, mas a análise do projeto foi adiada.

Bassuma e outros parlamentares foram até Campo Grande em 2007 acompanhar a condução do processo. Ele considerava o caso exemplar.

Das 10 mil mulheres cujas fichas foram apreendidas, a Promotoria de Mato Grosso do Sul chegou a cerca de 1.200 pacientes que responderiam pelos abortos. Foram retirados do caso prontuários prescritos e aqueles em que não foram encontradas fortes evidências para o processo.

A pena mínima para o crime de aborto no Brasil é de um ano, e, por isso, as acusadas têm direito a um benefício no sistema penal, a suspensão condicional do processo. Em alguns casos, o processo pode ser extinto.

Os promotores ofereceram essa possibilidade a todas as mulheres do caso de Campo Grande logo de cara —e organizações feministas apontaram que essa era uma maneira de fazê-las confessar o crime. As primeiras que aceitaram a suspensão também tiveram de fazer trabalho voluntário em creches durante o período do acordo.

"Elas vão olhar para aqueles meninos da creche, muitas vezes nascidos em famílias mais carentes do que as delas, e vão pensar no filho que poderiam ter tido", disse o juiz Aluízio Pereira dos Santos na época. Depois de críticas, a medida foi suspensa para as próximas pacientes.

"Isso vai contra recomendações de tratados internacionais de direitos humanos e reforça o papel das mulheres como cuidadoras, uma visão discriminatória e preconceituosa", diz Beatriz Galli, advogada do Ipas, organização internacional que busca aumentar o acesso a contraceptivos e a abortos seguros.

Questionado, o juiz defende a decisão. Ele diz que "sempre a pessoa vai ver do lado pior a situação e o lado mais injusto" e que não escolheu um trabalho que fosse avesso ao profissionalismo de cada uma delas.

Segundo Fabiana Severi, professora de direito da USP, argumentos de caráter moralista e que reforçam estereótipos de gênero são comuns em processos de aborto, como restrições de ir a bares ou sair de noite. Ela é uma das coordenadoras de uma pesquisa que analisou 167 decisões judiciais de casos de autoaborto. A média dessas ações judiciais no Brasil é de 400 por ano.

Colagem de Manuela Eichner para a Ilustríssima, em matéria sobre aborto
Colagem de Manuela Eichner - Reprodução

"Muito provavelmente isso envolve um estereótipo muito prejudicial à mulher. De que ela, quando vai a bares, está mais suscetível a relacionamentos casuais, de que não seria uma boa mulher, uma boa mãe."

São argumentos, diz ela, que ecoam outros crimes de gênero —por exemplo, casos de feminicídio, em que argumentos como a "legítima defesa da honra", tese derrubada em agosto pelo STF, são usados para justificar crimes contra mulheres por uma suposta "falha moral".

A então ministra da pasta das mulheres, Nilcéa Freire, publicou um texto no jornal O Globo criticando a condução do processo de Campo Grande. A decisão, para ela, era "tão injusta quanto estarrecedora, apesar de encontrar amparo na legislação brasileira".

É central na discussão atual o argumento de que o Código Penal fere direitos fundamentais das mulheres ao criminalizar o aborto.

A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que começou a ser julgada pelo STF no dia 22 de setembro, argumenta que "a consequente imposição da gravidez compulsória compromete a dignidade humana e a cidadania das mulheres", já que deixa de reconhecer a elas a capacidade de tomar decisões relevantes da vida reprodutiva.

A ação foi apresentada em 2017 pelo PSOL e é a principal aposta de movimentos pela descriminalização do aborto no Brasil. A ADPF destaca que a criminalização afeta especialmente mulheres em condição de vulnerabilidade social, negras e indígenas.

O limite de 12 semanas para o aborto foi definido por uma conjunção de justificativas. Países usados como parâmetro para a discussão, como Alemanha, também definem esse tempo gestacional. Há ainda menção a uma decisão de 2016 da 1ª Turma do STF. Na decisão de um habeas corpus, o entendimento foi de que o aborto não deveria ser considerado crime se realizado até esse período. O relator do caso foi o ministro Luís Roberto Barroso, que assume a presidência do tribunal com a saída de Rosa Weber.

Outros parâmetros foram usados em debates recentes. Em 2020, o Senado da Argentina decidiu descriminalizar o procedimento até a 14ª semana, e a Corte Constitucional colombiana ratificou no ano passado um tempo de 24 semanas.

A Suprema Corte dos Estados Unidos foi na contramão ao derrubar o direito ao procedimento em 2022 e deixar as decisões a cargo dos estados. A mortalidade materna no país cresceu desde então.

Lenise Garcia, da organização Brasil Sem Aborto, fundada em 2005 como resposta ao PL 1135, defende que o cenário de gravidezes indesejadas deveria ser solucionado com prevenção. Ela também argumenta que a medicina teria avançado o suficiente para evitar mortes de gestantes com menos de 18 anos e que isso tornaria desnecessária a interrupção da gravidez mesmo em casos previstos na lei, como o de risco de vida.

Essa afirmação é refutada por especialistas. A Organização Mundial da Saúde afirma que o risco de mortalidade materna é mais alto para menores de 15 anos. Médicos ouvidos pela Folha dizem que até em casos de violência sexual nem sempre é possível prevenir todas as gestações —de modo que o aborto legal nesta condicionante continuaria sendo necessário.

A Associação Nacional de Juristas Evangélicos, a Anajure, fez uma carta aberta ao STF pela rejeição da descriminalização. Entre outros pontos, cita o artigo 5º da Constituição, que declara inviolável o direito à vida.

Pessoas e grupos com esse mesmo posicionamento também costumam argumentar que, ao julgar uma ação desse tipo, o STF estaria usurpando as competências do Legislativo. A Advocacia-Geral da União, que representa o governo federal, disse que o tema deveria ser tratado no Congresso.

Segundo a professora de ciência política da UnB (Universidade de Brasília) Flávia Biroli, uma vez que a ação pede uma análise constitucional da penalização, ela está dentro do escopo das funções do STF. "Há duas funções da corte que são fundamentais. Uma é o controle de constitucionalidade, então a primeira avaliação feita é se a penalização ou acesso ao aborto são correspondentes à Constituição corrente no Brasil", diz ela.

A segunda razão que torna o tribunal o espaço adequado para o debate é que ele responde a um sistema internacional de direitos humanos que estabeleceu diretrizes sobre o tema. A ministra Rosa Weber respondeu a esse questionamento quando votou a favor da descriminalização até as 12 semanas.

Weber era relatora do processo e publicou seu voto no plenário virtual do STF antes de se aposentar. Caberá a seu sucessor, Barroso, pautar o julgamento no plenário físico. Ainda não há data para isso.

"Esse não é um julgamento sobre opiniões majoritárias, é um julgamento sobre direitos inscritos na Constituição. E Rosa Weber diz que a Constituição não prevê qualquer noção de direito da pessoa não nascida", afirma a professora da UnB. "Por outro lado, o direito da mulher à vida e à dignidade está previsto com muita clareza na Constituição de 1988."

O tema deve provocar reação do Congresso Nacional, que tem entrado em embate com decisões do STF pautando os mesmos temas no Legislativo. O julgamento também coloca o país nos holofotes internacionais. Pode ser histórico em momento em que outras cortes do Sul Global debatem o tema, como o México, que também decidiu pela descriminalização no começo de setembro.

"Um voto favorável tão bem fundamentado, em contexto em que países descriminalizam o aborto por decisões de suas cortes, é importante porque a gente tem uma construção no sistema jurídico de garantias às mulheres, de proteção à vida digna. O Brasil pode ou não ser parte dessa história."

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