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Antonio Calmon foi do underground a novelas juvenis sem deixar de provocar

Diretor e roteirista de sucesso, conhecido por 'Menino do Rio' e 'Vamp', planeja livro sobre amante morto pela polícia

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Andrea Ormond

Crítica e pesquisadora de cinema

[RESUMO] A vida de Antonio Calmon é tão intrigante quanto sua obra. Cria da turma do cinema novo, assistente de Glauber Rocha e Cacá Diegues, ele se jogou na contracultura no final dos anos 1960, passou fome e viveu o amor livre, e logo depois se firmou como diretor de policiais e pornochanchadas iconoclastas. Nos anos 1980, contratado pela Globo, criou programas para crianças e adolescentes de imenso sucesso, como "Armação Ilimitada", "Top Model" e "Vamp". Hoje recluso, longe do cinema e da TV, prepara sua última virada: publicar um romance autobiográfico.

O amazonense Antonio Calmon, 78, poderia ter encerrado sua carreira no início dos anos 1980, logo após ter lançado o filme "Garota Dourada" (1984). Já havia deixado seu nome na história do cinema brasileiro, dirigindo filmes de gêneros variados, como os policiais "Eu Matei Lúcio Flávio" (1979) e "Terror e Êxtase" (1979), as comédias "Gente Fina É Outra Coisa" (1977) e "O Bom Marido" (1978), além de ter sido assistente de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Arnaldo Jabor.

Sem saber, aos 39 anos, Calmon iniciava mais uma encarnação de artista. Contratado em 1985 pela Rede Globo, passou a integrar o núcleo de dramaturgia da emissora. Deixou as narrativas de crimes, a pornochanchada e dialogou com crianças e adolescentes.

Foi assim no seriado "Armação Ilimitada" (1985) e em novelas como "Top Model" (1989) e "Vamp" (1991). Ensaiou esse movimento a partir de "Menino do Rio" (1982), quando sintetizou em filme a "geração saúde", vendida da zona sul carioca para o resto do Brasil.

O cineasta e roteirista Antonio Calmon em 1979 - Divulgação

Uma lenda para os quarentões e cinquentões nostálgicos de hoje, sinônimo da juventude dos anos 1980, Antonio Calmon sumiu da mídia desde que seus últimos trabalhos na Globo não conseguiram o sucesso esperado. Raramente dá entrevistas. Durante a pandemia, escreveu um romance que pretende lançar ainda neste ano. "É a história de um amor que tive. Um homem que foi assassinado por um policial."

Calmon convive com amigos jornalistas e youtubers. Alguns deles nem sonhavam nascer quando estreou em 1965 o curta-metragem "Infância", em concurso promovido pelo Jornal do Brasil.

"Antes de conhecer Calmon, vi seu curta-metragem", recorda Cacá Diegues. "Estava no júri do festival, tinha terminado 'Ganga Zumba' e fiquei fascinado com o filme dele, transbordava talento. Fiz de tudo, mas não consegui que fosse o vencedor daquele ano. Então, inventei ali mesmo o prêmio ‘Cacá’, para ele ser assistente de direção do meu próximo filme, 'A Grande Cidade'."

"A Grande Cidade" marcou a entrada de Calmon no cinema novo. Permaneceu alguns anos abraçando o rótulo de cinemanovista, época em que continuou a ser assistente de direção, dessa vez de Glauber Rocha, em "Terra em Transe" (1967) e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1969).

Inquieto, em 1969 abandonou as filmagens de "Brasil Ano 2000", não sem antes provocar o diretor Walter Lima Júnior: "Walter, quando o navio vai afundar, os ratos são os primeiros a saltar fora. E eu sou um rato...".

Ainda fez a direção de produção de "Pindorama" (1970), a convite de Arnaldo Jabor, até realizar seu primeiro longa-metragem, "O Capitão Bandeira Contra o Doutor Moura Brasil" (1971). Era uma mistura alucinada do universo de Calmon: crise existencial, história em quadrinhos, Jean Cocteau, quebra da quarta parede, desbunde.

"Creio que o filme se tornou um marco de modernidade, tanto na linguagem cinematográfica quanto nas imagens com efeitos visuais de vanguarda", afirma Affonso Beato, diretor de produção e de fotografia do longa. "Antonio Calmon foi uma voz libertadora na minha carreira, com suas audácias e seus desafios estéticos que até hoje perduram."

O próprio Calmon não mede palavras: "'Capitão Bandeira' levou cinco anos para se pagar. Umas pessoas acharam genial, outras odiaram. Um crítico, muito conhecido no meio cinematográfico e que até hoje está aí, disse que o Serviço Nacional de Informações deveria tomar providências. Eu já havia enlouquecido, virado um maluco, drogado".

Quem assistisse a "Capitão Bandeira" não imaginaria o projeto seguinte. "Paranoia" (1976) foi a adaptação de uma crônica de Carlos Heitor Cony, que também assinou o roteiro. A dupla Cony-Calmon flertou com o Rubem Fonseca do conto "Feliz Ano Novo" (1975). O filme narra a história de uma família neurótica, à beira do caos, que tem o azar de ser assaltada por facínoras.

Cony estava cada vez mais distante de "O Ventre" (1958), seu machadiano livro de estreia, e mais próximo das psicoses de "Pilatos" (1974). Enquanto isso, Calmon burilava o próprio estilo: cinema, história em quadrinhos, sarcasmo e sangue. Anselmo Duarte, Norma Bengell e Lucélia Santos aparecem na tela ao som de umbanda e rock progressivo.

As aventuras de Calmon alimentam o estranhamento em relação a sua obra. Ele tanto pode ser do underground quanto do mainstream. Uma hora cá, outra hora lá. Passou fome, perdeu os dentes, desesperou-se de amor por homens e mulheres. Mas também sentiu prazer nas bilheterias, emplacou sucessos e faturou como bom empreendedor.

"Eu Matei Lúcio Flávio" (1979) é um exemplo das revoluções do cineasta. A sinopse é terrível: biografia do policial Mariel Mariscot, ligado a grupos de extermínio durante a ditadura militar. Porém, como diria o poeta Oswald de Andrade, é necessário ter olhos livres. Com os olhos livres, pode-se apreciar uma obra de arte pelo que ela é —não pelos preconceitos ligados a ela.

O filme parecia fadado a ser uma ode à extrema direita e lhe rendeu a pecha de reacionário, mas Calmon preparou um cavalo de troia. Iconoclasta, retratou o universo das drogas e da prostituição no meio da "limpeza social e cívica" promovida por Mariscot. Chegou a ser ameaçado de morte e avisou na imprensa: "Eu não sou 'presuntável'".

O controverso policial foi interpretado de forma icônica por Jece Valadão. No elenco também estava Anselmo Vasconcelos, que trabalhou novamente com Calmon em outros dois filmes, "Terror e Êxtase" (1979) e "O Torturador" (1981), obras no limite entre o real e o absurdo.

"Antonio Calmon me proporcionou trabalhar no seu cinema transgressor de si mesmo", lembra Anselmo. "Sua consciência estava além do que filmava. Compreendi isso e também assim atuei, superando os limites das personagens. Um encontro de rara profundidade, e eu sempre desejei mais."

Realizador de filmes policiais, Calmon abraçou com igual talento a comédia erótica. Em "O Bom Marido" (1978), criou cenas de alta voltagem. A atriz Maria Lúcia Dahl tomava banho de chuveiro enquanto o espectador ouvia riffs da música "Sound and Vision", de David Bowie. Afraninho (Paulo César Pereio) assistia ao banho. Pasmo, encantado, subjugado pela beleza da esposa.

A década de 1980 anunciou os primeiros sinais de renovação. "Menino do Rio" abandonou o erotismo e a violência para ter como protagonista um rapaz pacato, eternamente dividido entre pranchas de surfe e voos de asa delta. No ano em que a Blitz lançava "Você Não Soube Me Amar", o filme captou a atmosfera do período, com sucesso estrondoso. "Garota Dourada" (1984) repetiu a mesma fórmula e praticamente o mesmo elenco.

Entre maio e novembro de 1984, na TV Globo, uma novela sobre bicheiros patinava no horário nobre das oito da noite. "Partido Alto", escrita por Glória Perez e Aguinaldo Silva, não convenceu o público. Gerou, porém, um fruto inesperado: os atores André De Biase e Kadu Moliterno estavam no elenco e pensaram em um seriado de aventuras. Daniel Filho aceitou a proposta. Convidou Calmon com o objetivo de repetir, na televisão, o sucesso de "Menino do Rio". Nascia "Armação Ilimitada" (1985-1988).

Assinado o contrato, Calmon deixou de ser o "pistoleiro solitário", nas idas e vindas do cinema brasileiro. Passou a escrever, em vez de dirigir, operando em uma equipe com Euclydes Marinho, Patricya Travassos e Nelson Motta. Além deles, Guel Arraes, o vanguardista diretor das novelas "Guerra dos Sexos" (1983) e "Vereda Tropical" (1984).

Euclydes Marinho e Nelson Motta saíram em pouco tempo. Portanto, o que se viu de "Armação Ilimitada" deve muito ao trio Calmon-Travassos-Arraes. Calmon coordenava o texto final e ajudava na edição dos episódios, à moda dos videoclipes.

Juba (Kadu Moliterno), Lula (André De Biase) e Zelda Scott (Andréa Beltrão) viveram um trisal aceito pela classe média brasileira, toda sexta-feira, depois das 21h. Para fechar o núcleo da série, surgiu o menino Bacana (Jonas Torres). Sucesso garantido com o público infantil.

"Armação Ilimitada" trouxe a cultura do surfe —que Calmon ainda hoje acredita ser uma espécie de seita, não apenas um esporte—, além de citações à literatura e ao cinema. O nome Zelda Scott fazia referência direta à esposa do escritor norte-americano F. Scott Fitzgerald. A abertura do programa dividia a tela da TV em quadros, como no documentário "Woodstock" (1970), sobre o icônico festival de rock.

Depois do fenômeno de "Armação", Calmon estreou nas novelas das sete horas com "Top Model" (1989), escrita com Walter Negrão. "A protagonista era Malu Mader, que vinha de novelas emblemáticas como 'Ti Ti Ti' (1985) e 'Fera Radical' (1988). Teve ainda Gaspar (Nuno Leal Maia) e sua trupe de filhos, às voltas com temas como namoro e masturbação. Uma novela ensolarada, até nos créditos", diz Adilson Marcelino, pesquisador de cinema e TV.

Em "Top Model", "Vamp" (1991) e "O Beijo do Vampiro" (2002), Calmon deixou em segundo plano a vida adulta, que era o epicentro dos seus longas-metragens.

"Com 'Vamp', Calmon se consagrou de vez na TV. A novela era divertidíssima", afirma Marcelino. "De novo uma musa, Cláudia Ohana. De novo uma turma endiabrada de adolescentes e crianças. Vampiros, rock e comédia desbragada. É impossível falar de telenovela juvenil sem passar por 'Vamp'. Bebeu na fonte de filmes como 'A Dança dos Vampiros' (1967), de Roman Polanski, inspiração confessa, e também no ‘terrir’ do cineasta Ivan Cardoso. Junto com 'Top Model', são duas novelas inesquecíveis de um grande artista."

Se o estilo de Calmon mistura conceitos, o mesmo acontece na intimidade. Sentado na poltrona, observa as fotos do pai, da mãe e dos bisavós enquanto conta piadas divertidas sobre a família.

Na mesma parede, imagens de ex-namorados e pérolas da contracultura. Livros de Jean Genet, Timothy Leary, André Gide, uma estátua de Buda perto do cinzeiro e de cigarros. Calmon habita um castelo de espíritos, que entram e saem pelos quartos. Vai da gargalhada estrondosa até as lágrimas, quando fala sobre o horror do mundo.

A respeito da transição de cineasta subversivo para ídolo juvenil, se autobiografa.

"Nunca aprendi a andar de bicicleta, assobiar, jogar bola. Feio, patético. Sempre apanhando nos colégios. Meus únicos amigos eram os livros. Mas, na adolescência, descobri-me lindo. Meninas e meninos me disputando. Eram tempos sombrios e eu sentia medo, muito medo. Até que comi um cogumelo mágico e, quando voltei, tudo mudou. O menino que guardava em mim assumiu o comando. Convivi com todo tipo de pessoas, muitas delas sórdidas e desprezíveis. Sem me contaminar."

No seriado "Mulher" (1998), integrou um time de roteiristas que escreveram sobre tabus. Estupro, aborto e depressão pós-parto eram alguns dos temas. Anos antes, na novela "Olho no Olho" (1993), o satanismo da história também havia chocado os antigos fãs de "Menino do Rio" e "Vamp".

"Em 'Olho no Olho', exagerou nas tintas. A receita de mosaico pop, repleta de referências, desandou um pouco. Ninguém entendeu nada, e o resultado foi um fracasso", afirma o cineasta e pesquisador Lufe Steffen. "A partir dali, tentaram domesticar e higienizar o estilo do Calmon, o que se mostrou também um erro. Não deram mais espaço para esbanjar suas ideias alucinadas, e por isso as novelas dele ficaram meio sem alma. Se já existisse streaming na época, talvez tivesse migrado para lá, teria mais liberdade."

"Vamp", "Top Model" e outros sucessos renderam muito dinheiro para a Globo e Calmon. Ele soube gastar sem culpas. Amigos há mais de 50 anos, a cineasta Helena Solberg dá algumas pistas para entendê-lo.

"Ele me impressiona pelo desrespeito às regras. Seus heróis, como os poetas Arthur Rimbaud e Paul Verlaine, são os outsiders e os marginais, os sem saída", diz Helena. "Calmon considera-se um anarquista conservador, com valores. Vejo nele um 'enfant terrible'."

Quando menos se espera, a infância reaparece na conversa. Calmon fala com entusiasmo sobre uma foto da primeira comunhão.

"Na hora exata em que tirei a foto, estava pensando na homossexualidade. Não tinha o conceito, evidentemente, com essa idade, mas sabia do que gostava. Estou sorrindo e é um sorriso perverso. Curioso, porque tinha acabado de receber a primeira comunhão."

Depois de tantos anos, uma coisa não mudou: o fato de ser diferente. "Até a minha homossexualidade não tem nada a ver com a homossexualidade dos bem-pensantes", afirma. "Nunca desejei fazer a mímica do casamento burguês. É difícil admitirem uma pessoa como eu, que gosta de rapazes da periferia, que gosta do amor pago."

Entre altos e baixos, a vida e a obra de Antonio Calmon são opostas aos tempos em que vivemos. Sua originalidade, no entanto, permanece e tudo supera.

"O meu romance se passa em Copacabana, e estou morrendo em Copacabana", diz, com a sinceridade de sempre. Antes de morrer, está pronto para que as novas gerações o redescubram.


ANTONIO CALMON

Vida
Nasceu em Manaus, em 1945. Aos 8 anos mudou-se com a família para o Rio. Apaixonado por cinema, dirigiu com amigos o curta "Infância" (1965). A obra chamou a atenção do cineasta Cacá Diegues, que o convidou para ser seu assistente de direção em "A Grande Cidade" (1966). Calmon repetiu a função em "Terra em Transe" (1967) e "O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro" (1969), ambos de Glauber Rocha. Estreou na direção de longas com "O Capitão Bandeira contra o Dr. Moura Brasil" (1971). Tem 78 anos.

Principais filmes
"Paranoia" (1976), "Gente Fina É Outra Coisa" (1977), "O Bom Marido" (1978), "Eu Matei Lúcio Flávio" (1979), "O Torturador" (1981), "Menino do Rio" (1982)

Principais trabalhos na TV
"Armação Ilimitada" (1985-1988, série), "Top Model" (1989, novela), "Vamp" (1991, novela)

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