Start-up americana desafia céticos com novo Concorde; compare os supersônicos

Gigantes United e American compram o Overture, mas dúvidas sobre viabilidade permanecem

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São Paulo

Em 2016, uma start-up criada por um engenheiro de computação americano com jeitão de nerd causou alguns sorrisos irônicos na indústria de aviação ao prometer desenhar aviões para ressuscitar o voo comercial supersônico.

Enterrada por um acidente e pela inviabilidade econômica e ambiental de seu grande representante, o Concorde, aquela era glamourosa seria repaginada a partir de critérios ao gosto dos nossos dias: sustentabilidade e "storytelling" para convencer investidores.

Imagem digital do Boom Overture, novo supersônico que está sendo desenvolvido nos EUA
Imagem digital do Boom Overture, novo supersônico que está sendo desenvolvido nos EUA - Divulgação

A Boom Supersonic, criada em 2014, ainda é motivo para desconfiança, mas tem desafiado os céticos. Na semana passada, a maior empresa aérea do mundo, a American Airlines, encomendou 20 unidades de seu modelo Overture. Não há valores conhecidos, mas especula-se que cada um dos aviões custe cerca de US$ 200 milhões (pouco mais de R$ 1 bilhão).

A American foi além e assinou um contrato de opções por mais 40 aeronaves, superando assim o pedido de 15 compras e 35 eventuais aquisições que havia sido feito no ano passado por sua rival United Airlines, outra líder de mercado americana.

O fundador e presidente da empresa, Blake Scholl, comemorou nas redes sociais, lembrando que o Concorde só teve 14 das 20 unidades construídas empregadas comercialmente, para a British Airways e a Air France, que voaram de 1976 a 2003.

A American chegou a fazer uma pré-encomenda de seis Concorde nos anos 1960, mas a crise do petróleo de 1973 fez os americanos pensarem duas vezes: o voo supersônico se caracteriza pelo consumo brutal de combustível.

O aumento dos preços do querosene de aviação devido aos ataques do 11 de Setembro, o fato de que as regulações ambientais quase criminalizaram o barulho dos motores do Concorde e a queda de um deles em Paris no ano 2000 levaram ao fim do serviço acima da velocidade do som, que cortava o tempo de voo entre a capital britânica e Nova York de 6h30min para menos de 3h.

O que faria a ideia atrativa agora, em plena ESG, onde o E (ambiente, na inicial inglesa) fala alto? A resposta de Scholl foi tecnologia: ele promete uma turbina que, ao contrário da do Concorde, não necessita do "afterburner" —uma injeção de combustível no fluxo de ar aquecido que aumenta o empuxo, comum em motores de caças.

Com isso, o avião voará a 1,7 vezes a velocidade do som, pouco mais de 2.000 km/h. O Concorde podia chegar a 2,04 vezes (2.520 km/h), embora em cruzeiro fosse só um pouco mais veloz do que o Overture. Segundo a Boom, alterações nos motores e com o desenho aerodinâmico novo, isso poderá ocorrer sem a barulheira em pousos e decolagens ou o estrondo que se ouve quando a barreira do som é quebrada.

Hoje, não há aviões comerciais autorizados para voo supersônico. Assim como o Concorde, o Overture só o faria em cima do mar, mas a Boom promete 20% a mais de velocidade subsônica sobre terra. Com isso, prevê que o trecho Londres-NY seja feito em 3h30min.

Por fim, a aeronave irá voar 100% com SAF, que são os combustíveis de aviação sustentáveis feitos a partir de coisas como biomassa, lixo ou óleos reciclados.

Tudo muito bonito, faltando aqui o detalhe: o motor não existe. A empresa fez um acordo há alguns anos com a fabricante britânica Rolls Royce, que desenhou os motores do Concorde, mas a parceria não rendeu frutos visíveis. Na semana passada, Scholl anunciou que haverá notícias sobre isso.

No caso do SAF, outra questão: sua produção ainda é incipiente, e governos na Europa e EUA já estabeleceram cronogramas de sua adoção por toda a frota subsônica existente. "Ninguém sabe como ele [Scholl] fará isso sem nem haver motores", afirmou em um debate da revista americana Aviation Week o especialista Richard Aboulafia, da consultoria Aerodynamic Advisory. "O carro está na frente dos bois", comentou um dos editores da revista, Guy Norris.

Para o analista de tecnologia da publicação, Graham Warwick, apesar dos problemas, o processo atual é inédito. Usualmente, grandes fabricantes como a Boeing, Airbus ou Embraer desenvolvem o produto e o ofertam ao mercado. Se dá certo, empresas aéreas se envolvem na evolução e ajudam a lançar o novo avião.

A Boom fez o caminho inverso, ofertando apenas o conceito. É o modus operandi das start-up, como ela mesmo se define. Nunca foi aplicado ao intrincado mercado de aviação comercial.

Scholl se defende, prevendo um mercado para mil supersônicos nos anos 2030. Para tanto, estabeleceu um cronograma para o lançamento do Overture que parece ilusório: quer o primeiro avião construído em 2025, testes no ar em 2026 e uso comercial, em 2029.

Não há notícia de nenhum produto nessa indústria, que como a crise do Boeing-737 MAX prova, vive de confiabilidade para se viabilizar, desenvolvido tão rapidamente. A demora em fazer voar o XB-1, seu protótipo demonstrador de tecnologia, sugere obstáculos.

Ainda assim, o dinheiro para começar veio, inclusive com um empurrão da Japan Airlines no começo da carreira da Boom. Em 2017, foram levantados US$ 51 milhões (R$ 263 milhões), valor que quintuplicou até o ano passado, quando o acordo com a United foi anunciado. Os números desde então não são públicos, mas Scholl já disse acreditar que sejam necessários até US$ 8 bilhões para colocar o Overture no ar.

Visualmente, ele e Concorde são bastante parecidos, um monumento à engenharia dos anos 1960 —que trouxe também o Tu-144 soviético, de uso limitado e supostamente desenho roubado do rival ocidental.

Mas há diferenças importantes no redesenho feito este ano do Overture, além de motores (antes três, agora quatro), com uma cabine bastante menor (caberão até 80 passageiros, ante 128 no máximo do irmão mais velho), asas maiores e angulosas para maior eficiência e uso de materiais compostos, mais leves e resistentes, na fuselagem.

Em outro golpe de sorte para Scholl, a Força Aérea dos EUA se interessou pelo modelo, levando o mastodonte militar Northrop Grumman a associar-se à Boom para prever modelos especiais, talvez de transporte VIP.

Por fim, a promessa de que a operação será rentável com passagens no topo do que é cobrado para classe executiva, US$ 5.000 (R$ 25,6 mil), um quarto do que custava voar no Concorde, em valores corrigidos.

Para temperar tudo, o tal "storytelling" tão ao gosto do mercado das start-ups. Scholl nasceu em Ohio e estudou computação em Pittsburgh. De 2001 a 2006, trabalhou na Amazon, saindo para o e-commerce do Groupon e, depois, ao empreendedorismo.

Ele sempre foi interessado por aviação, e tem brevê para pilotar aviões pequenos desde 2008. No ano anterior, contudo, o atraso de horas de sua namorada em um voo para o teria despertado para o desejo de fazer um supersônico. Talvez a confirmação do sucesso aprimore o desenho da história, assim como ocorreu com o do avião.

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