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Passaportes de imunidade podem recuperar economia, mas criar cidadãos de 2ª classe

Especialistas defendem recurso que deve acelerar retorno à normalidade, mas alertam sobre ampliação da desigualdade

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BAURU (SP) e São Paulo

Ansiosa para abrir suas fronteiras depois de um ano de pandemia, a União Europeia deve apresentar nesta quarta (17) um projeto para a criação de um certificado digital que ateste a vacinação contra a Covid-19, o que seria o primeiro passo em direção à permissão para voltar a circular entre os países-membros do bloco.

O "passe verde", como foi chamado pela presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, proverá informações sobre o status de imunização de cada portador, bem como o histórico de testes de detecção do coronavírus.

O objetivo é permitir que cidadãos europeus "circulem com segurança" pelos 27 países-membros —e fora deles a partir de projetos de cooperação com organizações internacionais. No sentido da integração global, a China saiu na frente e lançou, na semana passada, um aplicativo com finalidade parecida.

Os recursos de geolocalização do passaporte digital chinês também possibilitam, por exemplo, que o sistema identifique se um usuário esteve em contato com alguém que recebeu o diagnóstico de Covid-19 ou se esteve em algum local com altos índices de contágio —o que poderia motivar restrições de mobilidade. A imprensa ligada ao regime de Xi Jinping louvou o lançamento chinês, dias depois de classificar a iniciativa europeia como "inviável".

Fotoilustração mostra aplicativo lançado pela China que deve funcionar como passaporte de imunidade - Nicolas Asfouri - 9.mar.21/AFP

Disputas geopolíticas à parte, medidas semelhantes estão sendo estudadas —ou já aplicadas, como no caso de Israel— em diversos países. A perspectiva é a de que os passaportes de imunidade permitam o afrouxamento das restrições que tanto prejudicaram o crescimento econômico.

Associados às campanhas de vacinação, esses certificados acelerariam o ritmo da retomada definitiva. A estratégia faz sentido do ponto de vista da saúde pública, já que ajuda a limitar a circulação de pessoas por meio de critérios de segurança, avalia Fernando Aith, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP e diretor do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário na mesma universidade.

Para Aith, porém, a iniciativa causa bastante preocupação porque pode resultar no aprofundamento das desigualdades sociais. "Quem vai poder circular no mundo vai ser quem teve acesso à vacina. E como quem teve acesso, em geral, está nos países mais ricos, isso tende a ampliar ainda mais o fosso que existe entre as nações desenvolvidas e subdesenvolvidas", diz.

Segundo o professor, a adesão aos passaportes de imunidade deve agravar o fenômeno da "securitização da saúde", em que países mais ricos agem mais para preservar seus próprios interesses do que no sentido da cooperação internacional para promover o direito à saúde de forma universal.

"A consequência dessa medida é criar cidadãos de segunda classe em cada país e no globo como um todo", afirma Aith, para quem uma solução mais adequada e eficaz seria um investimento conjunto e coordenado para universalizar o acesso aos imunizantes.

Esse é também o posicionamento da Organização Mundial da Saúde (OMS). Na semana passada, Michael Ryan, diretor-executivo da entidade, desaconselhou o uso dos passaportes de imunidade como critério para permissão de viagens internacionais devido à baixa cobertura vacinal no mundo.

"A vacinação simplesmente não está suficientemente disponível em todo o mundo, e certamente não está disponível em uma base equitativa", disse.

Ainda não está claro por quanto tempo aqueles que receberam diagnóstico de Covid-19 e se recuperaram poderão ser considerados imunes à doença. Os casos de reinfecção, embora raros, existem —e crescem à medida em que variantes do vírus circulam sem controle em alguns países. Seriam os recuperados também elegíveis para receber o passaporte de imunidade?

A resposta curta, para Rebecca Brown, pesquisadora do Centro Uehiro de Ética Prática da Universidade de Oxford, é sim. "Há um imperativo ético claro de não restringir a liberdade de movimento das pessoas se isso não ameaçar a saúde de outras", diz.

"Se as pessoas estão imunes, mantê-las presas não ajudará a prevenir a disseminação da infecção e, portanto, não temos justificativa para restringir sua liberdade com base nisso."

Desde o ano passado, Brown estuda as considerações práticas e os desafios relacionados à introdução dos passaportes de imunidade. Em um artigo publicado no periódico Journal of Medical Ethics em agosto, ela afirma que essa medida deve ser avaliada a partir de conceitos como justiça, cooperação social coletiva e impactos sobre liberdades civis.

A pesquisadora sugere ainda que os passaportes sejam adotados em conjunto com políticas públicas como a ampliação da testes gratuitos de detecção do vírus e até a introdução de punições adicionais para quem descumprir as diretrizes.

Em âmbito global, porém, Brown alerta para os possíveis diferentes níveis de tolerância à entrada de viajantes em determinados países. A Nova Zelândia, por exemplo, cuja resposta à pandemia está entre as mais bem-sucedidas, teria, por essa lógica, uma peneira muito mais fina em sua política de permissão do que países europeus cuja economia está fortemente ligada ao turismo, como Espanha e Grécia.

Mas a eficácia dos passaportes esbarra ainda na falta de clareza científica ou na insuficiência de dados sobre a imunização. Com o surgimento das variantes do coronavírus, mais letais e mais contagiosas, ainda há incertezas sobre o nível de eficácia das vacinas.

Isso contribui para que aqueles que não foram vacinados ou não desenvolveram algum grau de imunidade depois de terem sido contaminados entrem em uma espécie de limbo, afirma Jon Rueda, pesquisador na área da bioética na Universidade de Granada, na Espanha.

Ele defende a adoção dos passaportes de imunidade, que, em sua visão, poderiam reduzir os danos econômicos, psicológicos e sociais causados ​​pelo confinamento, mas faz algumas ressalvas.

"Não faz sentido conceder esse direito apenas às pessoas vacinadas sem ao mesmo tempo reconhecer o mesmo direito a quem tem imunidade natural por ter sido contaminada, e sem dar alternativas seguras para pessoas que não pertencem a nenhum dos dois grupos", diz.

"Também não se pode perder de vista que os direitos fundamentais devem ser respeitados e os benefícios devem ser distribuídos de forma justa, com consideração especial para os grupos socialmente desfavorecidos", acrescenta o pesquisador.

Alguns desses direitos fundamentais estão em jogo à medida que recursos como o aplicativo lançado pela China tornam-se objetos de uma demanda crescente, diz Ronaldo Lemos, advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro e colunista da Folha.

"É como se estivesse acontecendo um trade-off, uma compensação, em que para exercer um direito fundamental, que é o direito da mobilidade, você tem que abrir mão de questões, como por exemplo, a sua privacidade", explica.

Segundo o especialista, o tipo de tecnologia utilizado nos passaportes de imunidades chineses é semelhante ao que foi visto nas estratégias de resposta à pandemia de outros países asiáticos. Japão, Coreia do Sul e Singapura, por exemplo, utilizaram sistemas de rastreamento de contatos para identificar rapidamente novos possíveis focos de contaminação por coronavírus e determinar restrições em recortes geográficos mais específicos.

"Esses países têm uma tradição maior de controle social usando a tecnologia. Então, quando esse tipo de passaporte chegar ao Ocidente, é claro que vai haver problemas", avalia Lemos.

A ameaça à privacidade é o principal desses problemas, já que sempre pode haver a suspeita de que os dados coletados possam ser utilizados para fins comerciais, de monitoramento e até de perseguição política.

"Você só vai ter privacidade se viver dentro de uma caverna", afirma o professor Vivaldo José Breternitz, da Faculdade de Computação e Informática da Universidade Presbiteriana Mackenzie. "É preciso ter regras que punam quem usa mal os dados das pessoas."

Na Europa, essas regras existem. A legislação sobre o uso de dados do bloco europeu está entre as mais robustas do mundo, segundo Lemos, e serviu de inspiração para a Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil. No caso da China, resta saber que tipo de contrapeso se oporá à tese de que os fins —o controle da pandemia— justificam os meios.

Em Israel, que conta com o programa de imunização contra a Covid-19 mais acelerado do mundo, o sistema de passes verdes adotado há três semanas está ganhando contornos políticos e causando dissidências na sociedade. Grupos de pessoas que não querem ser vacinadas dizem que os que usam o certificado estão estimulando um ambiente de discriminação.

As casas de shows de Tel Aviv e Jerusalém retomaram suas programações, apenas para quem tem o passaporte verde, e ainda com restrições de lotação. Academias de ginástica, restaurantes e hotéis também voltaram a funcionar, mas só para os imunizados.

Nem todos os estabelecimentos, porém, podem pedir para que se mostre o certificado de vacinação. Lojas de artigos considerados essenciais, shoppings e supermercados não podem exigi-lo.

Ilian Marshak, fotógrafo e youtuber, diz que não pretende se vacinar porque acha que a implementação dos passaportes pressiona aqueles que têm medo de serem imunizados e alimenta o sentimento de rivalidade entre estes e os que já receberam suas doses.

Pesquisas recentes divulgadas pela imprensa israelense mostram que 25% dos pouco mais de 4 milhões que ainda não receberam a vacina não pretendem fazê-lo. Desse grupo, 41% dizem temer efeitos colaterais do imunizante, e 30% afirmam não acreditar na eficiência dele.

“Embora não exista uma lei que nos obrigue a ser vacinados, você vai ficando encurralado, porque deixa de ter os mesmos direitos que outros israelenses estão tendo, de acesso a serviços”, argumenta Marshak, que diz ser contra a obrigatoriedade da vacinação —não contra o imunizante em si.

“É importante que eu possa escolher se vou querer que algo seja introduzido no meu corpo com uma agulha. E quando o Estado passa a dar certificados a quem foi vacinado para que essa pessoa possa exercer atividades sociais, eu que não quero me sinto excluído e tolhido em meus direitos.”

O uso dos passes verdes também tem provocado desavenças entre grupos de amigos, familiares e, principalmente, nas redes sociais. "Tenho uma amiga de infância que atua no Facebook contra a vacina. Ela é professora e diz que está com medo de não poder lecionar mais porque não quer tomar a vacina", diz a chef Temar Shany Gal, que já recebeu suas doses. Segundo ela, a amiga considera um absurdo que a população seja vacinada "como gado".​


Perguntas e respostas

Como funciona o passaporte de imunidade? Na prática, ele é um atestado de imunização concedido a quem já recebeu doses da vacina contra a Covid-19. Há discussões sobre a concessão a quem já foi contaminado pelo coronavírus e se recuperou, mas ainda falta clareza científica sobre quanto tempo pode durar essa imunidade.

Tem ligação com o chip do passaporte físico? Ainda não. Em países onde já foi lançado, como China e Israel, o passaporte é acessado por meio de um aplicativo para smartphones.

Que dados os passaportes guardam? O certificado armazena, principalmente, informações sobre a vacinação contra o coronavírus, assim como o histórico de testes de detecção. O passaporte chinês inclui ainda recursos de geolocalização que podem ajudar a rastrear possíveis focos de contaminação.

O sistema é unificado? As iniciativas já existentes ainda não estão conectadas entre si. A proposta apresentada pela União Europeia, porém, deve incluir um sistema único para os 27 países do bloco. A China estuda a integração em nível global por meio de parcerias de cooperação internacional.

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