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Visionários, vingativos ou medíocres, líderes moldaram os 100 anos do Partido Comunista Chinês

Dirigentes como Mao, Deng e Xi souberam conciliar autoridade e flexibilidade para garantir sobrevivência da legenda

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São Paulo

Dos 50 fundadores de 1921 aos 92 milhões de membros de hoje, o PC Chinês (Partido Comunista Chinês) viveu em cem anos uma história de idealismo e grandiosidade mas também de traições e expurgos.

No comando desta saga, estiveram líderes que variaram do medíocre ao visionário e que não pouparam o mais populoso país do mundo de momentos de puro drama.

Com Mao Tse-tung no centro, estátuas homenageiam líderes comunistas chineses no recém-aberto museu dedicado ao partido, em Pequim
Com Mao Tse-tung no centro, estátuas homenageiam líderes comunistas chineses no recém-aberto museu dedicado ao partido, em Pequim - Thomas Peter/Reuters

O Partido Comunista Chinês amargou longos 28 anos de oposição até finalmente ver concretizada a revolução, em 1949. Ao contrário de seu equivalente soviético, soube ser flexível, características que garantiram sua sobrevivência até o século 21.

O partido teve momentos de liderança personalista, mas em geral comportou-se como uma estrutura em que as decisões foram tomadas de forma mais coletiva do que na antiga União Soviética.

“Ao longo de sua história, o Partido Comunista Chinês demonstrou capacidade de se adaptar. Isso ocorreu antes da chegada ao poder, em 1949, quando, apesar de nunca ter renunciado à sua ideologia proletária, mudou o foco para a revolução no campo e trabalhou sobretudo com uma base camponesa”, diz Anthony Saich, professor da Kennedy School na Universidade Harvard e autor do recém-lançado “De Rebelde a Governante: 100 anos do Partido Comunista Chinês”.

A década inicial do partido foi nada menos do que traumática para seus fundadores. Chen Duxiu, o primeiro secretário-geral, era nascido em uma família abastada e se radicalizou na juventude, tendo exercido papel importante na revolução nacionalista que levou à queda da China Imperial, em 1911.

Ensaísta e professor, influente na difusão de ideias marxistas e bem relacionado com os bolcheviques soviéticos, foi a escolha natural para liderar os comunistas chineses em 1921, função que exerceu até 1927. “Chen é o pai fundador do partido. Ele representa o importante grupo de jovens intelectuais idealistas que no começo compunham a maioria dos membros e formaram a cultura partidária”, diz o professor alemão Klaus Mühlhahn, autor de “O Partido Comunista Chinês - Um Século em 10 Vidas”.

Mas a defesa por Chen de que a revolução fosse feita a partir da conscientização do proletariado urbano, nos moldes do que pregavam os soviéticos, colocou-o em choque com a estratégia de mobilização rural preferida por Mao Tse-tung e aliados. Chen acabou expulso do partido em 1929 e terminou seus dias no ostracismo em 1942, aos 62 anos, como professor de uma escola perto de Chongqing, no centro do país.

A saída de cena de uma figura que chegou a ser chamada de “Lênin chinês” jogou o partido em crise existencial no final dos anos 1920. Seu sucessor foi praticamente imposto pelos soviéticos, que tratavam o PC Chinês como uma espécie de filial. A escolha recaiu sobre Xiang Zhongfa, um ex-sindicalista do setor naval, nascido em uma família pobre em Hubei e que nunca concluiu os estudos.

Suas principais credenciais eram a fidelidade total às orientações do então líder soviético, Josef Stálin.

Essas características só aumentaram o choque quando ele foi preso pelo Kuomintang, legenda que governava a China. Para se salvar, revelou segredos do partido, e por isso é considerado até hoje persona non grata pela historiografia oficial comunista. Mesmo assim, foi executado pelos captores, em 1931.

A turbulência dos primeiros anos deixou espaço livre para a ascensão de Mao, embora ele só tenha formalmente sido elevado à função de líder do partido em 1943.

Formandos da Universidade de Wuhan em frente a uma imagem celebrando os 100 anos do Partido Comunista da China - AFP

Sua estatura cresceu durante a guerra civil contra os nacionalistas na década de 1930, em especial ao liderar a mitológica Longa Marcha, que forjou os comunistas como uma força militar e de massas.

Comandante inquestionável do país durante 27 anos, até a sua morte, em 1976, Mao transformou a China à sua imagem, para o bem e para o mal. Combinando autoridade pessoal e vasto aparato de coerção física e ideológica, o grande defensor da revolução a partir do campo rendeu-se à necessidade de recuperar terreno na área industrial. Em 1958, lançou o Grande Salto Para a Frente, uma tentativa de substituir a economia agrária pela industrial em apenas cinco anos, o que gerou fome e aumento da pobreza.

Em 1966, apresentou uma segunda iniciativa de impacto, a Revolução Cultural, ostensivamente para eliminar desvios burgueses, mas que foi usada para expurgar inimigos internos. Estima-se que as duas ações tenham resultado na morte de até 40 milhões de pessoas. “Na era de Mao, o partido era definitivamente moldado por sua personalidade e não teria seguido adiante com as políticas radicais do Grande Salto Para a Frente ou da Revolução Cultural se não tivesse sido por sua insistência”, diz Olivia Cheung, especialista em China na Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres.

Após sua morte, o PC Chinês ensaiou um processo de crítica a seus excessos, mas de forma cautelosa, numa avaliação que se mantém até hoje. “A decisão do partido no começo dos anos 1980 foi separar o envolvimento de Mao na Revolução Cultural de todo o resto. Ou seja, a visão é que ele errou nesse ponto, mas agiu bem e de forma importante em todo o resto”, afirma Cheung.

O período final da vida de Mao, em que ele estava bastante debilitado, foi especialmente rico em intrigas. O poder real era exercido pela "Gangue dos Quatro", uma facção que incluía sua mulher, Jiang Qing, apontada como responsável pelos maiores abusos da Revolução Cultural.

A saída de cena do “Grande Timoneiro”, em 1976, levou a contra-ataques das alas mais reformistas, com a prisão e o julgamento de Jiang e de aliados. Também houve a reabilitação de uma das mais célebres vítimas dos expurgos de Mao e única liderança na história do partido que pode rivalizar com ele em estatura. Para muitos analistas, Deng Xiaoping é até mais relevante para o que a China é hoje.

“As reformas e a visão de Deng salvaram o partido e o regime de entrarem em colapso e implantaram as fundações para a força da China de hoje”, diz Xu Guoqi, professor da Universidade de Hong Kong.

Nascido em 1904 na província de Sichuan, Deng viveu na França na década de 1920, participando de um programa de intercâmbio estudantil. Na Europa, teve o primeiro contato com o marxismo mas também com o funcionamento de uma economia de mercado, algo que exerceria profundo impacto em sua vida.

Ao retornar à China, em 1927, começou a subir nas fileiras do Partido Comunista, só que a pecha de burguês desviado o acompanhou durante toda a vida. Durante a Revolução Cultural, já sexagenário, foi enviado para realizar trabalhos manuais numa fazenda —e reabilitado apenas após a morte de Mao.

Curiosamente, ele nunca exerceu o cargo mais alto na burocracia partidária, embora tenha sido, durante duas décadas, a força dominante. O máximo a que chegou foi chefe da comissão militar do partido. “Deng nunca precisou de cargo, porque era respeitado pelos militares e pelo partido de forma geral”, afirma Xu.

Homens passam em frente a imagem do atual dirigente da China, Xi Jinping, no museu dedicado ao Partido Comunista, em Pequim
Homens passam em frente a imagem do atual dirigente da China, Xi Jinping, no museu dedicado ao Partido Comunista, em Pequim - Noel Celis/AFP

Tamanha era a ascendência do dirigente que muitas vezes ele não se dignava a sair de casa para participar dos enfadonhos eventos partidários. “Ele ficava a maior parte do tempo em casa e chamava funcionários do partido e do governo para dar ordens. Em cem anos do PC Chinês, apenas Deng e Mao tiveram esse tipo de poder”, afirma Mühlhahn.

Considerado o arquiteto da China moderna, Deng iniciou o processo de abertura econômica e ficou famoso por repetir um antigo provérbio segundo o qual “não importa se o gato é preto ou branco, se pegar o rato, é um bom gato”. O segredo, diz o professor Saich, de Harvard, era abraçar teses capitalistas sem relaxar o controle do partido, um processo que não ocorreu sem obstáculos. “O prestígio e a senioridade de Deng deram a ele o papel de principal tomador de decisões no sistema político chinês. Não significa que a política econômica era livre de questionamentos. Um traço que ele dividia com Mao era que mais rápido era melhor, uma abordagem que recebia críticas de reformistas econômicos mais cautelosos.”

Hábil, Deng se manteve atuante nos bastidores, preservando sua autoridade, enquanto secretários-gerais como Hua Guofeng (1976-81) e Hu Yaobang (1981-87) eram fritados após embates com facções mais conservadoras. Expoente da ala reformista, Hu foi defenestrado em 1987. Sua morte dois anos mais tarde foi o estopim para o maior questionamento sofrido pelo partido em sua história, os protestos estudantis que levariam ao Massacre da Praça da Paz Celestial, em Pequim.

A revolta foi contida, mas a ameaça, considerada inaceitável, custou a cabeça de Zhao Ziyang, líder do partido que ficou menos tempo no poder, apenas dois anos. O trauma chacoalhou a organização interna da legenda, que iniciou um gradual processo de concentração de poder nas mãos do secretário-geral.

A mesma pessoa passou a concentrar o comando do partido, o posto de chefe da comissão militar e o cargo cerimonial de presidente da China. O espaço para figuras que governam dos bastidores, como foi Deng, praticamente extinguiu-se, e passou a haver uma divisão mais clara de tarefas com o primeiro-ministro, encarregado de questões administrativas.

Como resultado, o líder chinês passou a ser uma figura mais visível interna e externamente, e o país perdeu algumas das características de ditadura de partido, embora nunca tenha sido uma autocracia personalista nos moldes norte-coreanos, por exemplo.

Jiang Zemin, engenheiro elétrico de perfil tecnocrático escolhido para estabilizar o partido após a tormenta de 1989, foi o primeiro a personificar esse novo modelo. Seguidor das reformas de Deng, deixou como legado a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, e a possibilidade de empresários se filiarem ao PC Chinês. Em 2002, cedeu o posto a Hu Jintao, 78, primeiro líder a ter nascido após os eventos formadores do partido nas décadas de 1920 e 30, o que enviou uma mensagem de renovação.

De estilo mais discreto, Hu seguiu no processo de concentração de poder, apertando a repressão a minorias e dissidentes, ao mesmo tempo em que consolidava o milagre econômico chinês, com taxas anuais de crescimento superiores a 10%. O ápice da nova estatura internacional do país veio com a organização da Olimpíada de 2008.

Nada que se compare, no entanto, ao que ocorre sob Xi Jinping, líder desde 2012, descrito como o mais poderoso dirigente chinês depois de Mao e Deng. “A adoração pública de Xi como a personificação do progresso da China é algo que não vimos desde Mao. A centralização do processo decisório e do poder nele foi extraordinária e inesperada”, diz Saich. O atual líder aboliu os limites de tempo para mandatos, além de ter dado início a um culto à personalidade comparável ao da era maoísta.

“Tudo com que Xi se preocupa é a manutenção do partido no poder. Mesmo que haja divisões internas, ninguém ousa desafiá-lo”, afirma Xu. Aos 68 anos, ele se sente confiante em desafiar abertamente o poderio militar e econômico dos EUA, além de acelerar a projeção internacional do regime.

Isso ficou claro no anúncio da Nova Rota da Seda, conjunto de iniciativas de financiamento à infraestrutura pelo mundo, e na diplomacia da vacina, com a distribuição de doses contra a Covid-19.

Para Olivia Cheung, da Universidade de Londres, hoje o partido o coloca num tripé ao lado de Mao e Deng. “A linha atual é que Mao fez a China ficar de pé, Deng a fez rica e Xi a fará orgulhosa”, diz.

No momento em que inicia seu segundo século de existência, o Partido Comunista Chinês não tem mais dúvidas existenciais como as que afligiam a organização algo quixotesca criada em 1921 por um punhado de revolucionários em Xangai. “Pouca gente se dá conta de que, dado o ambiente turbulento de antes da revolução de 1949, por muito pouco o partido não sobreviveu”, afirma Cheung.

Hoje, os novos desafios para esta organização política, uma das mais bem-sucedidas já criadas pelo homem, são outros: como manter-se ao mesmo tempo uma força dominante sobre a vida de 1,4 bilhão de habitantes e maleável a um mundo em transformação. A resposta, como ocorre há cem anos, dependerá de como os dirigentes do futuro vão manejar suas vaidades e ideais.

100 anos de líderes comunistas chineses

Chen Duxiu (1921-27) - Considerado o “pai fundador” do partido, tinha perfil intelectual e defendia uma revolução nos moldes soviéticos. Acabou expulso após desentendimento com Mao e por ser considerado trotskista

Xiang Zhongfa (1928-31) - Foi preso pelos nacionalistas do Kuomintang e, mesmo revelando segredos do Partido Comunista, acabou executado

Bo Gu (1931-35) - Comandou o partido no início da Longa Marcha, durante a guerra civil contra os nacionalistas

Zhang Wentian (1935-43) - Chefiou os comunistas na resistência à invasão japonesa, durante a Segunda Guerra

Mao Tse-tung (1943-76) - Maior líder do partido, responsável por levar os comunistas ao poder. Também sob sua supervisão foram implementados o Grande Salto Para a Frente e a Revolução Cultural. Estima-se que 40 milhões de pessoas tenham morrido em razão do colapso da economia e expurgos

Zhou En-lai (1949-76) - Primeiro-ministro e braço direito de Mao, foi o principal responsável pela aproximação com os EUA, que resultou na histórica visita do presidente Richard Nixon, em 1972

Hua Guofeng (1976-81) - Assumiu a liderança do partido após a morte de Mao e promoveu a crítica sobre os excessos da Revolução Cultural. Sua gestão foi ofuscada pela atuação de Deng Xiaoping, que introduziu as primeiras reformas de mercado

Deng Xiaoping (1978-89) - Exerceu diversos cargos, embora nunca o de líder máximo do partido. Mesmo assim, controlou a legenda na prática e foi o responsável pelas reformas de mercado que revolucionaram a China

Hu Yaobang (1981-87) - Da ala reformista e ligado a Deng, que no entanto não o protegeu do desgaste junto às alas mais conservadoras do partido, levando à sua queda. Sua morte, em 1989, deflagrou os protestos na praça da Paz Celestial, em Pequim

Zhao Ziyang (1987-89) - Líder do partido que ficou menos tempo no poder, foi substituído após o massacre de estudantes em 1989

Jiang Zemin (1989-2002) - Assumiu com a missão de reprimir as manifestações e reafirmar a autoridade do partido. Em seu período, a China ingressou na Organização Mundial do Comércio

Hu Jintao (2002-12) - Sob seu comando, a China registrou índices de crescimento econômico anuais superiores a 10% e concluiu grandes obras, como a Hidrelétrica das Três Gargantas. O país também sediou a Olimpíada de 2008

Xi Jinping (desde 2012) - Centralizou o poder como nenhum líder desde Mao e fez do combate à corrupção uma prioridade; aumentou os embates comerciais e políticos com os EUA, além de ter lidado com a crise do coronavírus

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