Crise climática é ameaça à segurança nacional, diz relatório do governo dos EUA

Documento lista possíveis consequências do aquecimento global e como Biden prevê agir

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Washington | The New York Times

Conflitos internos e entre países agravados. Maior deslocamento e migração de populações expostas à instabilidade estimulada pelo clima. Tensão militar e incerteza crescentes.

O governo Biden divulgou vários relatórios na quinta-feira (21) sobre a mudança climática e a segurança nacional, expondo em termos crus os modos como o mundo em aquecimento começa a representar desafios significativos à estabilidade global.

Os documentos —emitidos pelos Departamentos de Segurança Interna e de Defesa, assim como pelo Conselho Nacional de Segurança e pelo diretor da Inteligência Nacional— formam a avaliação mais completa do governo até agora sobre esses e outros desafios, e como ele pretende abordá-los.

Incêndio florestal próximo a área urbana na Califórnia, na região de South Lake Tahoe
Incêndio florestal próximo a área urbana na Califórnia, na região de South Lake Tahoe - Josh Edelson - 30.ago.21/AFP

O momento do lançamento parece destinado a dar ao presidente Joe Biden algo para demonstrar que seu governo está agindo contra a mudança climática, enquanto ele se prepara para participar da COP26, importante conferência sobre o clima em Glasgow.

Nas últimas semanas, Biden se esforçou para adiantar sua agenda sobre o clima, que está emperrada no Congresso. Em consequência, ele corre o risco de ter pouco para mostrar na Escócia, onde seu governo esperava restabelecer a liderança americana no combate ao aquecimento global.

Os relatórios "reforçam o compromisso do presidente com decisões baseadas em evidências conduzidas pelas melhores informações científicas e dados disponíveis", disse a Casa Branca nesta quinta. "Servirão como base para o avanço de nosso trabalho crítico sobre o clima e a segurança."

Entre os documentos divulgados está uma estimativa da Inteligência Nacional, cujo objetivo é coletar e destilar as opiniões dos órgãos de inteligência do país sobre ameaças definidas.

O relatório, primeiro documento do tipo a examinar exclusivamente a questão do clima, diz que as ameaças para a segurança nacional dos Estados Unidos aumentarão nos próximos anos. Depois de 2030, países-chave enfrentarão riscos crescentes de instabilidade e necessidade de assistência humana, afirma.

O documento faz três julgamentos centrais: as tensões globais vão aumentar, enquanto os países discutem como acelerar a redução das emissões de gases do efeito estufa; a mudança climática vai exacerbar pontos de atrito em fronteiras e ampliar a competição estratégica no Ártico; os efeitos da crise serão sentidos mais intensamente nos países em desenvolvimento, menos equipados para se adaptar.

O documento também declara que a China e a Índia, com grandes populações, terão papéis-chave em determinar com que rapidez as temperaturas globais aumentarão.

No que se refere a países cumprirem o compromisso feito na conferência do clima de Paris em 2015, de manter o aumento das temperaturas globais em menos de 2°C, o relatório de inteligência diz que as probabilidades não são boas.

"Diante das atuais políticas governamentais e tendências em desenvolvimento tecnológico, julgamos que coletivamente é improvável que os países cumpram as metas de Paris.", afirma o documento.

"Países com altas emissões teriam de fazer um rápido progresso no sentido de descarbonizar suas matrizes energéticas, afastando-se dos combustíveis fósseis na próxima década, enquanto nações em desenvolvimento precisariam contar com fontes de baixo carbono para seu desenvolvimento econômico."

O Pentágono também divulgou um relatório que examina como vai incorporar a seu planejamento as ameaças relacionadas ao clima. O documento aponta que os militares começarão a gastar uma parcela significativa de seu próximo orçamento em análise climática nos seus exercícios de segurança nacional.

"O departamento pretende priorizar o financiamento de componentes do DOD [Departamento de Defesa] em apoio a exercícios, jogos de guerra, análises e estudos dos impactos da mudança climática em missões, operações do DOD e estabilidade global", diz o relatório.

"Em coordenação com aliados e parceiros, o DOD vai trabalhar para evitar, mitigar, levar em conta e responder a riscos de defesa e segurança associados à mudança climática."

O relatório foi elogiado por especialistas, por reconhecer que a mudança climática e a defesa nacional estão cada vez mais conectadas. "Este é o mais extenso relatório que o DOD já produziu sobre riscos climáticos, passando a integrar diretamente o conceito de mudança climática como uma ameaça multiplicadora em todos os seus aspectos de estratégia de defesa, planejamento, posição de força e orçamento", diz Sherri Goodman, ex-subsecretária da Defesa para segurança ambiental e hoje secretária geral do Conselho Internacional Militar sobre Clima e Segurança.

Erin Sikorsky, que liderou a análise de segurança nacional e clima em todos os órgãos de inteligência nacionais até o ano passado, citou a crescente rivalidade entre os EUA e a China como exemplo de por que as duas questões estão ligadas. "O Pentágono precisa trazer uma lupa climática para sua avaliação estratégica da política externa chinesa e comportamento no cenário mundial", afirma Sikorsky, que hoje é diretora do Centro para Clima e Segurança. "Do contrário, obterá respostas erradas para questões-chave sobre a força e a estratégia da China."

O Departamento de Segurança Interna, que inclui a Agência Federal de Gestão de Emergências, o principal encarregado de responder a desastres naturais, disse em outro relatório que está examinando as futuras tecnologias e equipamentos que serão necessários para abordar os riscos climáticos representados pelo clima extremo.

Isso poderá incluir investimentos em mais construção de consumo eficiente de energia e veículos elétricos. Como a maior agência federal de aplicação da lei, o departamento tem uma frota significativa de veículos.

Segundo sua estratégia, o departamento começará a fazer do preparo para a mudança climática um foco de suas verbas para governos locais e estaduais. Ela também vai incorporar as mudanças científicas na orientação que dá aos setores público e privado para a gestão de riscos, oferecendo conselhos para comunidades específicas, como bairros de baixa renda que com frequência são cercados por infraestrutura decadente já sob risco de danos causados pelo clima.

O país já está vendo as consequências da mudança climática na migração, com furacões mortais e destrutivos levando os migrantes a deixarem suas casas na América Central e fugir para os EUA atravessando o México. Isso sobrecarregou as autoridades de fronteira em momentos desde 2014 e especialmente nos últimos seis meses.

O Conselho Nacional de Segurança divulgou seu próprio relatório na quinta, examinando como a mudança climática já está levando pessoas do mundo todo a migrar, dentro dos países e entre eles.

O documento comenta uma previsão que sugere que a mudança climática poderá levar quase 3% da população da América Latina, do sul da Ásia e da África subsaariana a se deslocar internamente nos países até 2050 —mais de 143 milhões de pessoas.

Esse movimento não seria apenas consequência da mudança climática, mas sobretudo da interação da mudança climática com outros desafios, como conflitos, segundo o documento.

Ao focar a migração climática entre continentes, o documento nota ainda que alguns americanos também já estão se mudando devido aos efeitos das mudanças. "Mesmo nos EUA, um evento extremo pode resultar em um grau relativamente alto de relocação permanente de populações de baixa renda expostas a condições crônicas que se agravam com o tempo."

Em fevereiro, Biden assinou uma ordem executiva orientando o Conselho Nacional de Segurança a oferecer opções para proteger e realojar pessoas deslocadas pela mudança climática, além de identificá-las adequadamente.

Em resposta, o relatório lançado na quinta, que deveria estar pronto em agosto, recomenda que a Casa Branca "trabalhe com o Congresso para criar um novo caminho jurídico para proteção humanitária individualizada nos EUA para indivíduos que enfrentam ameaças sérias à vida devido à mudança climática".

O relatório também pede a criação de uma equipe de funcionários de todos os órgãos do governo para coordenar a política americana sobre a migração climática.

Teevrat Garg, professor de economia na Universidade da Califórnia em San Diego, especializado em migração climática, elogiou a atenção do governo para o problema. Mas disse que o relatório poderia ter abordado a questão mais profunda do que os EUA e outros países desenvolvidos devem aos migrantes climáticos.

"Grande parte das emissões de carbono que causam a mudança climática veio dos países ricos, mas as consequências estão recaindo de modo desproporcional sobre os pobres", diz. Em consequência, os países ricos têm "uma obrigação de apoiar os refugiados climáticos".

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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