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Michel Gherman e Miguel Lago

Zemmour usa lugar de fala como judeu de forma traiçoeira na França

Candidato polemista à Presidência é fenômeno mais importante e complexo da nova direita mundial

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Michel Gherman

Assessor acadêmico do Instituto Brasil-Israel, professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos, e pesquisador da Ben Gurion University

Miguel Lago

Cientista político, professor da Escola de Assuntos Públicos da Sciences Po (Paris) e da Escola de Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Columbia (Nova York) e diretor do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS)

O ano de 2021 está acabando e é preciso, claro, falar sobre 2022, um ano que promete ser marcado por disputas políticas acirradas e uma temível polarização. E não estamos tratando apenas da eleição presidencial do Brasil, mas também a da França.

Um sinal vermelho se acende quando se fala de Éric Zemmour, candidato da extrema direita francesa, com nada menos que 17% das preferências nas pesquisas de opinião. Zemmour é um judeu de origem argelina, e este lugar de fala tem sido usado por ele de forma traiçoeira e preocupante na pré-campanha eleitoral.

Éric Zemmour, candidato de ultradireita à Presidência francesa, antes de participar do programa político 'Eliseu 2022', no canal France 2
Éric Zemmour, candidato de ultradireita à Presidência francesa, antes de participar do programa político 'Eliseu 2022', no canal France 2 - Christophe Archambault - 9.dez.21/AFP

Talvez nada tenha surpreendido tanto quanto sua tentativa de reabilitar o regime colaboracionista da Segunda Guerra, ao dizer na TV francesa que "Vichy protegeu os judeus franceses e deu guarida aos estrangeiros". É sabido que nada menos que 72,5 mil judeus foram retirados de suas casas e enviados para os campos de concentração nessa época.

Zemmour também revisitou o caso Dreyfus, um dos mais célebres relatos de antissemitismo em solo francês, no qual o oficial do exército judeu francês foi falsamente acusado de traição, no começo do século passado. Para ele, a inocência de Alfred Dreyfus "não é evidente".

Zemmour começou a carreira com uma trajetória clássica na França. Estudou na Sciences Po, universidade frequentada pelo alto escalão da política nacional. Mas falhou no exame de entrada na ENA, a Escola Nacional de Administração, onde basicamente todos que almejam um cargo mais alto na função pública precisam passar.

E isso é importante, porque Zemmour é uma figura —como a maioria das figuras da extrema direita—, extremamente complexada. O complexo e o ódio que ele tem dos tecnocratas, que é o primeiro grande ódio que nutre, vêm justamente dessa rejeição.

Zemmour construiu sua fama como polemista em programas de televisão e também como ensaísta e colunista de jornal —autor de três livros, escrevia no Le Figaro até um mês atrás.

Fundamentalmente, ele propõe o resgate e a supremacia de uma França essencialmente conservadora e ocidental, ameaçada por culturas e religiões estrangeiras trazidas pelas ondas migratórias.

Sobre os estimados 6 milhões de muçulmanos da França, cerca de 10% da população, Zemmour diz que deveriam "ter a oportunidade de escolher entre o Islã e a França".

Não por acaso, em entrevista ao Le Monde, Jean-Marie Le Pen —principal figura da extrema direita francesa desde a Segunda Guerra e pai da candidata Marine Le Pen— comentou: "A única diferença entre mim e o Zemmour é que ele é judeu, então é difícil qualificá-lo como nazista ou fascista; isso dá a ele grande liberdade". Esse é o ponto: Zemmour se coloca como alguém que limpa as acusações de nazismo e de antissemitismo por sua identidade judaica.

E que se sente mais autorizado a ir além na pauta da extrema direita. Enquanto Marine Le Pen quer zerar a imigração na França, Zemmour quer que os franceses deixem de ser franceses porque não são brancos.

É um cenário intrincado e assustador. Nas pesquisas de opinião, Le Pen, aparece tecnicamente empatada em segundo lugar com Zemmour nas preferências do eleitorado —o atual presidente, Emmanuel Macron, lidera com 28%.

Zemmour mostra-se ambíguo em várias direções. Quando perguntado sobre sua relação com o judaísmo, diz que não acredita em Deus, mas frequenta sinagogas e só come comida kosher. Não é um judeu religioso, não é um judeu ortodoxo. Em sua camada de prioridades, é primeiro francês, antes de qualquer outra coisa. E ser francês, na perspectiva dele, é ser membro de uma civilização judaico-cristã, que é o desejo da nova direita francesa.

Nesse âmbito, cabe lembrar que os árabes argelinos nunca tiveram direito à cidadania —mas os judeus argelinos, sim.

Nesse sentido, lidar com Zemmour é fundamentalmente lidar com uma nova versão, mais radical, mais pungente, mais importante e mais sofisticada do judaísmo. Zemmour traz a ideia de que o judeu pode ser aceito se abrir mão da crença no liberalismo e na cidadania.

"Zemmour é perigoso e insulta a moral judaica", afirma o escritor e intelectual francês Bernard-Henri Lévy, um de seus mais proeminentes críticos.

"Ver esse homem não apenas profanar seu nome, mas também se colocar contra tudo o que a esperança judaica lutou por milênios é de uma obscenidade insuportável", escreveu Lévy.

A comunidade judaica francesa, de cerca de meio milhão de pessoas, é a maior da Europa Ocidental. Muitos membros, particularmente aqueles de ascendência sefardita que vivem em áreas suburbanas pobres onde episódios envolvendo antissemitismo da comunidade muçulmana se tornaram mais comuns, consideram a mensagem intransigente de Zemmour anti-imigrante e anti-Islã atraente e enxergam nele o homem que resolverá os problemas de segurança e islamismo violento.

O antissemitismo na França, que sempre esteve em níveis alarmantes, corre o risco de escalar com a ascensão de Zemmour.

E não apenas nas hostes da direita, com o discurso de ódio legitimado, como entre os grupos de esquerda, que passam a interpretar o fenômeno de forma simplista, como se todos os judeus fossem racistas. Jean-Luc Mélenchon, que é o candidato de esquerda, por exemplo, em debate com Zemmour, afirmou que seus valores vinham do judaísmo.

De tal maneira que os judeus de esquerda na França estão órfãos. De um lado, a esquerda os acusa de serem judeus demais. De outro, a extrema direita os acusa de serem cristãos de menos. Nesse sentido, o que Zemmour promove é uma nova gramática do antissemitismo —não apenas na França, mas no mundo.

A França sempre lidou muito mal com seu passado. Zemmour copia todos os discursos de Vichy, da época do governo fascista e antissemita francês, só que, em vez de falar "judeu", diz "muçulmano".

É o fenômeno mais importante —e complexo— da nova direita mundial nos próximos anos. Uma figura extremamente sofisticada, que tem um lugar de fala muito especial, que Viktor Orbán (premiê da Hungria) não tem, que Donald Trump não tem, que Jair Bolsonaro também não tem. Uma figura perigosa que traz características fundamentais para se entender o que não deveria, mas pode acontecer daqui para frente nos próximos anos.

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