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Brics Rússia

Lula assiste a China engordar Brics com ditaduras e Estados falidos

Brasil tem vitória com convite incerto à Argentina; velho Eixo do Mal se une ao bloco com Irã

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São Paulo

Quando surgiu como ideia nos anos 2000, o Brics fazia sentido ante uma realidade mutante. A China emergia com força para o posto de potência desafiante do século 21, com os desafiados Estados Unidos envolvidos em suas guerras sem sentido.

Brasil e Rússia viravam xodós dos mercados com a forte demanda por commodities e os altos preços do petróleo, e no fim da festa a África do Sul chegou para marcar a presença do continente africano, grande playground das ambições chinesas com seus investimentos da Iniciativa Cinturão e Rota.

Lula, Xi e o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, durante encontro dos Brics em Joanesburgo
Lula, Xi e o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, durante encontro dos Brics em Joanesburgo - Gianluigi Guercia - 23.ago.2023/AFP

Já a complexa Índia vinha com o peso de sua economia e população, que viria a ultrapassar a chinesa neste ano. Como bloco, o Brics encarnava uma multipolaridade que rejeitava o domínio americano no pós-Guerra Fria, ainda que seus membros estivessem fazendo negócios com o Tio Sam como sempre.

Ao longo dos anos, do ponto de vista político, navegou entre a utilidade retórica a governantes de ocasião e a mera irrelevância. Seu único ramo concreto, o banco ora presidido pela ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, é um instrumento de "soft power" chinês na essência, não por acaso sediado em Xangai.

A Guerra Fria 2.0 lançada em 2017 por Donald Trump contra a assertividade de Xi Jinping, seguida pela convulsão que o mundo vive após uma pandemia devastadora e a volta dos canhões à Europa, cortesia de um dos fundadores do Brics, Vladimir Putin, alterou esse cenário.

A invasão de 2022 da Ucrânia e a reação ocidental, na forma de sanções draconianas à Rússia e o apoio militar a Kiev, aceleraram o processo de divisão mundial. Grosso modo, Pequim, Moscou e aliados de um lado, EUA e o tal Ocidente coletivo, do outro. No meio, atores relevantes, mas de musculaturas díspares.

Caso de Brasil e Índia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) acalentava, com sua volta ao poder depois da devastação deixada na política externa do governo de Jair Bolsonaro (PL), o sonho de se tornar um líder mundial inconteste. Meteu os pés pelas mãos com suas idas e vindas sobre a guerra e é contestado em seu próprio quintal, do pequeno Uruguai à nova esquerda andina.

Enquanto isso, os indianos iam à Lua, literalmente até. De forma figurativa, o primeiro-ministro Narendra Modi deu um salto espacial à influência de seu país, tornando-se o verdadeiro Lula idealizado: cortejado com visitas de Estado e negócios militares com Estados Unidos e França ao mesmo tempo em que, falando em paz, nega-se a condenar Putin e amplia a compra de petróleo barato russo.

Isso permite ao país seguir num Brics cada vez mais chinês e ser o maior antagonista de Pequim na Ásia, alinhando-se cada vez mais com Washington no Indo-Pacífico, como o grupo Quad demonstra. Se a convivência será possível no futuro, é insondável enquanto o bloco mantiver sua inapetência política.

Assim, a cúpula da expansão do Brics foi um espetáculo de Xi, que busca ser o líder do autoproclamado Sul Global e agora vê convidados ao clube Irã e Arábia Saudita, arquirrivais que restabeleceram relações sob promoção da China, que visa a minar a influência americana no Oriente Médio.

Rótulos em diplomacia são úteis para sistematizar processos e vender notícia, mas simplificam as coisas.

É o caso do Eixo do Mal, pecha impingida pelo presidente americano George W. Bush ao trio Irã, Iraque e Coreia do Norte em 2002, na aurora de sua campanha militarista que marcou o início do século. Era uma falácia para designar os bodes expiatórios da ocasião. O Sul Global, os antigos não alinhados da primeira Guerra Fria, é uma construção imaginária dadas as disparidades de interesses.

O termo carrega naftalina ideológica antiamericana, mas é dito de boca cheia por Modi, por exemplo. Hoje, o Brics tem uma ditadura rival dos EUA (China), uma autocracia aliada a Pequim (Rússia) e democracias em etapas diferentes de desenvolvimento, com bons elos com o Ocidente (Brasil, Índia e África do Sul).

A composição proposta no convite a novos membros altera esse balanço, embora sempre seja possível justificar abraço em qualquer capeta. Se todo mundo entrar, o grupo ganhará três ditaduras árabes (Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito), uma teocracia integrante do antigo Eixo do Mal (Irã) e Estados em graus variáveis de falência, a Argentina em crise aguda e a Etiópia recém-saída de outra guerra civil.

Os petrodólares dos representantes do Golfo Pérsico explicam quase qualquer coisa, claro, e Lula poderá cantar vitória por finalmente ter incluído a Argentina no pacote —embora a possibilidade de o radical Javier Milei levar a Presidência no país vizinho nas eleições gerais embaralhe tudo.

A desdolarização, uma das pedras de toque das nações do Brics, ganhará novos capítulos e servirá à retórica de autonomia ao gosto do cliente: Putin precisa dela porque está desplugado do sistema internacional, Xi quer ampliar o escopo do yuan, Lula busca falar grosso.

Nos EUA e na Europa, o Brics ampliado será visto como uma versão sinófila do Eixo do Mal, o que é tão reducionista quanto acreditar em Sul Global. Na prática, será preciso esperar para ver se a fanfarra dará lugar a mecanismos novos de integração aproveitando o que analistas veem como quase 45% da economia mundial em 2040 em caso de adesão total dos convidados. Ou se o bloco seguirá sua vocação de irrelevância, agora um pouco mais a serviço de Pequim no seu embate com Washington.

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