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Wallace de Moraes

Um manifesto à mulher negra

Faltam emprego, terras, autonomia, respeito

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Wallace de Moraes

Doutor em ciência política, é professor dos programas de Pós-Graduação em Filosofia, de História Comparada e do Departamento de Ciência Política da UFRJ; membro do Quilombo do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais)

Todo ano, no mês de novembro, alguns holofotes se voltam para os temas do racismo. Alguns se questionam: "Como ser antirracista?".

Existem respostas múltiplas. Sob uma perspectiva negra, é imprescindível aprender com as nossas ancestrais: heroínas, pois base da pirâmide das hierarquias sociais, mas, simultaneamente, fortificações das nossas culturas.

Assim, começo com duas ex-empregadas domésticas, ofício destinado em um país racista, fundamentalmente, para as mulheres com mais melanina na pele. Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo relataram experiências em seus livros que dificilmente seriam escritas por brancas que desconhecem, na pele, a junção das opressões de raça, classe, gênero e de território. A escassez de comida e os perigos da vida, pintados por elas com perseverança, ficam mais patentes, trazendo um retrato realista do cotidiano de várias pretas que enfrentam dificuldades para alimentar seus filhos.

Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez comungavam da necessidade da superação do "mito da democracia racial brasileira", que ajudou a obstar a organização das lutas antirracistas no país. Lélia asseverou: "Não é por acaso que a neurose cultural brasileira tem no racismo o seu sintoma por excelência". Assinalou que diferentes palavras, como "bunda", são de origem banto, representando o nosso "pretuguês". Lélia também criou o conceito de "Améfrica Ladina" para marcar a importância negra nas culturas do nosso continente, propositalmente esquecidas nas escolas e universidades.

Neusa Santos Souza, através de estudos psicanalíticos, propôs o conceito de "tornar-se negro" —que significa não só reconhecer-se, mas também admitir que foi massacrado, humilhado, explorado. Daí vem a necessidade de comprometer-se em resgatar sua história e suas potencialidades. Assim, educa sobre o nosso devir.

bell hooks (escrito assim mesmo, em minúsculas, para referenciar sua avó, coisas dos nossos compromissos ancestrais) nos instrui sobre a rebeldia de quebrar paradigmas racistas, transgredindo todos os valores eurocentrados. Em comum com Grada Kilomba, fala das "políticas do cabelo" e do aculturamento imposto às negras como violências de diferentes matizes. É de chorar ler o relato de uma menina negra em conflito com seu cabelo.

Angela Davis e Lucy Parsons, com flores e fuzis, ampliam as críticas da vida cotidiana para instituições como capitalismo, Estado e prisões. Chimamanda Adichie chamou a atenção para os perigos da "história única", que é eminentemente branca. Toni Morrison corroborou com a ideia conceitual dos "outros" (os não brancos). Nesse veio, Cida Bento identificou o "pacto da branquitude", que busca explicar como o universal é branco e exerce uma espécie de apoio mútuo que exclui negros dos espaços de poder. Também chamado por "pacto narcísico".

Kimberlé Crenshaw observou em suas pesquisas que as mulheres negras eram discriminadas por raça e gênero, sendo preteridas em lugares onde brancas (escritórios) e homens negros (operários) eram admitidos.

No sentido de juntar diferentes formas de opressão, Françoise Vergès e Ochy Curiel propõem a união das lutas antipatriarcais, anticapitalistas, antiautoritárias, antinacionalistas e anti-homofóbicas sob o viés do antirracismo.

Do teórico para a realidade. Neste momento, milhares de mulheres estão com dificuldades para alimentar seus filhos. Muitas não têm um lugar decente para morar. Faltam emprego, terras, autonomia e respeito.

Algumas estão nas prisões, outras nas diferentes formas de prostituição que uma sociedade autoritária, militarizada e hierarquizada nos lega.

A maioria delas é negra. Nosso dever se amplia quando sabemos que vivemos em um país onde 58,2 milhões de pessoas votaram em um candidato que não reconhece a existência do racismo. Temos um trabalho árduo pela frente. Precisaremos demais dessas mulheres. Devemos pensar nessas questões para além de novembro. A formação de quilombos será de suma importância.

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