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Guilherme Boulos

O ataque ao Plano Diretor de São Paulo

Já tão machucada pelo abandono, cidade pagará a conta se revisão for adiante

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Guilherme Boulos

Deputado federal (PSOL-SP), foi candidato à Prefeitura de São Paulo (2020) e à Presidência da República (2018)

O Plano Diretor é o principal instrumento que uma cidade tem para regular o uso e a ocupação do solo, imprimindo um planejamento para o desenvolvimento urbano. Diante de grandes interesses imobiliários, é a trava de segurança que o poder público detém para assegurar o combate a desigualdades territoriais, um sistema de mobilidade mais racional e a preservação de áreas verdes, de lazer e de convívio. É a expressão legal de um projeto de cidade. É sintomático, portanto, que o Plano Diretor de São Paulo, com méritos amplamente reconhecidos, esteja agora sob grave ameaça.

Sintomático porque São Paulo é hoje uma cidade sem projeto. Enquanto as metrópoles globais, seja na Europa, nos Estados Unidos ou na América Latina, debatem e implementam programas de transição energética, mobilidade verde e redução de distâncias, a atual gestão municipal não consegue sequer resolver os problemas básicos de zeladoria. Não tem visão de curto nem de longo prazo e, por isso, fica à mercê de interesses de ocasião. É neste contexto que se insere a proposta de mudança no Plano Diretor da metrópole.

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Região central de São Paulo, vista a partir de edifício na avenida São João - Gabriel Cabral - 19.jan.2023/Folhapress - Folhapress

Aprovado em 2014 na gestão de Fernando Haddad (PT) e tendo o urbanista Nabil Bonduki como relator, o plano trouxe avanços ousados e foi considerado exemplo internacional. Instituiu os eixos estruturantes, que permitem maior adensamento em regiões onde há metrô e corredores de ônibus, estimulando o transporte público numa cidade engarrafada pelo excesso de automóveis. Praticamente dobrou as Zeis (Zonas Especiais de Interesse Social) para estimular a construção de moradias populares. E inovou com a cota de solidariedade, ainda que não no formato originalmente proposto por Haddad, destinando um percentual de ganhos com empreendimentos imobiliários de alto padrão para o Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano), cujos recursos devem ser destinados para urbanização, habitação social e regularização fundiária.

Trata-se de um plano moderno e inclusivo para preparar São Paulo aos desafios urbanos do século 21. Infelizmente, não foi implementado de forma integral pelos governos que vieram em seguida.
E, agora, uma gestão que carece de visão de cidade e espírito público quer desfigurá-lo em aspectos decisivos. O texto, que pode ser votado na Câmara Municipal no dia 21 de junho, perverte o conceito de eixo estruturante, praticamente desvinculando-o do transporte público e estimulando um adensamento descontrolado.

O perímetro do eixo estruturante passa de 600 m das estações de metrô para 1 km e de 300 m dos corredores de ônibus para 450 m. Expande ainda a possibilidade de vagas de garagem nessas regiões, sem necessidade de outorga —o valor pago pelos empreendimentos como contrapartida urbanística por construções acima do previsto em lei—, ampliando o estímulo ao automóvel individual. E não para por aí: a proposta aumenta também o coeficiente de aproveitamento dos chamados miolos de bairro de 2 para 3, ampliando a verticalização em áreas residenciais.

Na prática, a liberação de adensamento afeta quase todo o centro expandido da cidade, sem planejamento. Para completar, o Fundurb é esvaziado de sua dimensão social, podendo ser utilizado para asfalto, numa cidade com caixa mais que suficiente para isso, ou numa troca por obras indeterminadas e sem critério de transparência.

Não por acaso, o Ministério Público questionou a tramitação do projeto de revisão. O prefeito Ricardo Nunes (MDB), um desconhecido dos paulistanos e que já deu mostras de querer trazer o bolsonarismo para a cidade —com arrogância e ataques diários baseados em fake news—, pode enfim encontrar sua "marca": um retrocesso urbanístico de graves proporções. Se for aprovada a revisão, será a cidade de São Paulo, já tão machucada pelo abandono, que pagará a conta.

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