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Art Basel Miami Beach filtra bobagens e joga holofotes nos mestres

Maior feira de arte americana, em Miami, celebrou clássicos incontornáveis em edição de 20 anos talhada para lucrar

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Miami Beach (EUA)

Neon é Bruce Nauman. Tiros são Chris Burden. Quadrinhos são Lichtenstein. Diamantes são Warhol. Diversão é Maurizio Cattelan.

Uma pintura-manifesto do colombiano Juan Uribe zombava de alguns dos maiores nomes das artes visuais em letras pretas contra um fundo branco, mas a tela que estava à venda na Untitled, feira montada numa tenda à beira-mar paralela à Art Basel Miami Beach deste ano, parece ter ficado para trás no tempo.

Esqueçam a banana presa com fita adesiva numa parede por aquele tão divertido Cattelan. O trabalho do italiano que quebrou a internet três anos atrás, vendido na época por US$ 120 mil e depois devorado numa performance como gesto de escárnio, estaria um tanto deslocado na nova, potente e exuberante versão da maior feira americana, que celebrou até o último fim de semana as suas duas décadas de vida em Miami Beach.

Mulher posa em frente à banana da obra 'Comedian', de Maurizio Cattelan, comida depois na Art Basel Miami Beach, em 2019 - Eva Marie Uzcategui/Reuters

Os absurdos de edições anteriores, como a fruta ostentada como troféu, e apostas que agora se provam furadas, como a febre das obras em NFT e o furor precoce em torno do metaverso vistos no ano passado, parecem ter saído de cena.

É verdade que um caixa eletrônico de mentira que prometia revelar o saldo bancário de qualquer um que se aproximasse da obra, na mesma galeria da banana, aliás, causou certo frisson nos momentos derradeiros da feira. Celebridades, como o DJ americano Diplo, foram logo às redes sociais mostrar seus saldos polpudos no letreiro da máquina.

Mas o que importa não são famosos ou emergentes. Nesta Art Basel Miami Beach, qualquer bobagem que agrade aos nouveaux riches, ainda bem, ou qualquer trabalho mais arriscado, uma pena, ficaram em segundo plano, dando a dianteira de um palco disputadíssimo para os clássicos incontornáveis, garantia de vendas.

Num mundo abalado pela Guerra da Ucrânia, hiperinflação e instabilidade política, com a extrema direita galgando governos pelo planeta, as galerias querem cifrões tão vistosos quanto os do caixa do coletivo americano MSCHF brilhando nos extratos. Nesse sentido, o saldo dessa Art Basel comemorativa é o abandono do experimentalismo e do escracho a favor de uma fé inabalável em joias verdadeiras.

Não que essas joias sejam anódinas. Donald Judd, o mestre do minimalismo americano, aparece com força em dezenas de galerias, entre elas a David Zwirner, de Nova York, uma das casas mais influentes do mundo, e a Gagosian, a galeria mais rica do planeta, com sedes que dão a volta no globo, de Los Angeles a Hong Kong.

Suas esculturas que lembram prateleiras metálicas, sóbrias, de ângulos retos, são a mais bela síntese desse retorno à ordem —do dinheiro.

Na cola de Judd, que teve há pouco uma elogiadíssima retrospectiva no MoMA, em Nova York, outros minimalistas estavam presentes. Robert Ryman, Larry Bell e Morris Louis tinham uma série de obras à venda, além de mestres do chamado grupo Zero, a resposta europeia ao minimalismo americano, com Günther Uecker e Otto Piene aqui e ali.

Outro nome que surgiu repetido à exaustão foi Lucio Fontana, com suas telas rasgadas em todas as cores possíveis espalhadas por uma sucessão de casas, da Vedovi, de Bruxelas, às milanesas Cardi e Tornabuoni, passando ainda pela Mazzoleni, de Londres, e a Mignoni, de Nova York.

Modernos à parte, na nova-iorquina Venus Over Manhattan, estava uma das obras da famosa série das cadeiras elétricas de Andy Warhol, esta na cor rosa-choque. A Lia Rumma, de Milão, mostrou uma linda seleção de monocromos de Ettore Spaletti. A Millan, de São Paulo, tinha uma raríssima tela da surrealista Maria Martins, da década de 1940, enquanto a também paulistana Fortes, D’Aloia & Gabriel destacou a obra de Wanda Pimentel, em pleno processo de redescoberta depois de uma recente retrospectiva no Masp.

Não faltaram outros nomes de peso do cânone moderno e contemporâneo. O americano Alexander Calder, alvo de uma robusta exposição ao lado de Joan Miró recém-encerrada na Casa Roberto Marinho, no Rio de Janeiro, apareceu com móbiles monumentais e gigantescas esculturas numa sequência de galerias.

Havia ainda obras de Ed Ruscha, Constantin Brancusi, Yves Klein, Pablo Picasso, Dan Flavin, Antoni Tàpies, Jean Dubuffet, Cy Twombly, Francis Bacon, Lucian Freud, Alex Katz, Dan Graham e Pierre Soulages, esses dois últimos mortos há bem pouco tempo.

Outro nome celebrado pouco depois da morte foi o brasileiro Emanoel Araújo, pela Simões de Assis, casa com espaços em São Paulo e Curitiba.

Essa lista é uma espécie de "dream team" de qualquer museu de primeiríssima linha. Os preços, quase todos na casa dos milhões. Se, por um lado, isso atesta o poder de uma feira tradicional como a Art Basel Miami Beach, por outro, mostra o mercado recalculando rotas e calibrando esforços.

Não é mais tão simples nem jogo jogado a aposta em pautas identitárias, artistas periféricos e minorias só pelo prisma da inclusão, que esbarra no "tokenismo" perigoso. É preciso ter estofo crítico e apelo visual, parece dizer o mercado.

O que o circuito ganhou com a entrada de novíssimos nomes nas galerias é inegável frescor, mas ao mesmo tempo muita coisa que precisava amadurecer chegou prematura aos holofotes e encurtou carreiras que seriam promissoras. O volume de lixo nesse sentido pode ser assustador.

Nem lá nem cá parece ser o terreno que as maiores galerias do mundo querem ocupar. Invenção de moda, ironia e irreverência até certo ponto e muito rigor, cálculo, profundidade histórica de volta à balança na hora de fechar negócio.

Neste momento em que todas as portas estão escancaradas, com mestres reposicionados e revistos, figuras esquecidas restabelecidas e enfants terribles empoderados, os diálogos possíveis ainda podem ser muito impressionantes.

Ione Saldanha, por exemplo, é uma modernista brasileira que vem sendo resgatada em conversas surpreendentes —com Alfredo Volpi, na bela seleção do galerista Paulo Kuczynski, e com a libanesa Etel Adnan, uma figura extraordinária morta há um ano, também na Simões de Assis.

Outro nome fundamental, que atravessa gerações num diálogo fecundo com a mais nova onda feminista, é a americana Judy Chicago, representada pela Jessica Silverman, de San Francisco, com um enorme bordado retratando uma mulher dando à luz uma criança.

Frida Kahlo, que não teve filhos, é outro pilar da vanguarda feminista e lá estava representada pela galeria uruguaia Sur com o corpete de gesso em que pintou um bebê no útero debaixo de uma foice com martelo. São gigantes abrindo caminho para novas gerações num mercado bilionário, uma luz vinda de outra direção.



O jornalista viajou a convite da Art Basel

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