Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros Flip

Flip, até quando a literatura infantil vai ficar num puxadinho?

No principal festival literário do país, livros para crianças e jovens são apartados e isolados da programação principal

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Faça o teste. Entre no site da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta-feira, dia 22. No carrossel de imagens estouradas, clique em "Veja todas as mesas do programa principal da 21ª Flip". Ou, se preferir, vá ao menu superior, em "Programa principal".

Comece a destrinchar as atrações, divididas por dias e horários. Conheça os escritores nacionais selecionados, como Luiza Romão, Socorro Acioli, Ricardo Aleixo, Nelson Maca e tantos outros. E também os autores internacionais, entre eles a equatoriana Mónica Ojeda, o anglo-americano Kelefa Sanneh e a alemã Nora Krug.

Criança na área dedicada à Flipinha, na Flip de 2022
Criança lê livro na área dedicada à Flipinha, durante a Flip de 2022 - Zanone Fraissat/Folhapress

Preste atenção nos principais nomes, nos temas das mesas e no que de mais quente foi preparado pelos organizadores do evento. E então responda. Cadê a literatura infantojuvenil?

Não está lá. O programa principal não tem nenhum autor, nenhum debate, nenhuma discussão sobre livros para crianças e jovens.

É claro que a Flip 2023 conta com atividades sobre esse tema e para esse público, com ótimos e premiados escritores e ilustradores, casos de Lúcia Hiratsuka, João Anzanello Carrascoza, Nina Rizzi e Fernanda Takai, só para citar alguns. Mas a programação está separada, apartada e isolada em outro espaço.

A Flip passou por diversas mudanças nos últimos anos. Trocou de curador, não teve curador, não teve autor homenageado, enfrentou protestos, sofreu com a pandemia de Covid-19 e até mudou a época do ano em que é organizada. Mas uma coisa parece imutável. Há sempre um fosso intransponível entre o evento dos adultos e a Flipinha. Há sempre uma distância entre a "Flip para valer" e a "Flip das crianças".

No site, essa segmentação é vista rapidamente. Os eventos dedicados à produção infantojuvenil não estão na aba principal, mas na seção "Programa educativo". E aí chegamos a um dos problemas —e olha que nem vou entrar na discussão sobre o nome Flipinha e esse diminutivo que se espalha feito praga por eventos literários.

A questão é que soa anacrônico e antiquado entender e batizar essa programação a partir do prisma da educação e do educativo. Ao fazer isso, é como se não encarássemos a escrita para crianças e jovens como estética, mas como atividade escolar e didática. E aqui vou citar a escritora Marina Colasanti, numa entrevista que fiz com ela há alguns anos.

"A literatura infantil é sempre entendida como um sanduíche ou uma cápsula que carrega dentro de si conhecimentos ou princípios morais", disse Colasanti. "Isso envenena a literatura. As grandes obras para esse público são grandes porque escapam disso."

Ao colocar essa produção sob o guarda-chuva do educativo, dizemos que entregamos arte para adultos, mas pedagogia para crianças.

Além disso, há uma dedução lógica nessa separação. Se um programa é o principal e o outro é o educativo, a conclusão óbvia é que a Flip não considera a literatura infantojuvenil como principal ou importante.

Crianças no centro histórico de Paraty durante a Flip de 2022
Crianças no centro histórico de Paraty durante a Flip de 2022 - Zanone Fraissat/Folhapress

O afastamento não está somente no site. Ele faz parte da gênese e da geografia do evento. Para começar, os curadores não são os mesmos. Do lado adulto, temos a dupla Fernanda Bastos e Milena Britto. Do lado das crianças e jovens, a curadoria neste ano é dividida entre a equipe do educativo e o Sesc —que, repito, fazem um bom trabalho curatorial. A questão é menos o varejo e mais a estrutura.

Vejamos a distribuição física. Enquanto o programa principal se desenrola no auditório principal —e, sim, a Flip gosta de reforçar esse adjetivo—, as atividades que abordam o livro infantojuvenil ocorrem na já tradicional tenda da Flipinha e no auditório da Santa Rita (e nas casas parceiras, é claro, mas esse já é outro papo). É tudo perto, são apenas 500 metros de distância, afinal estamos falando do centro histórico de Paraty. Só que é outro espaço. Não há mistura.

Na prática, funciona como uma churrascaria. Enquanto adultos comem à mesa e falam sobre coisas importantes no salão, crianças brincam num puxadinho, no espaço kids, por perto, ainda à vista, mas longe o suficiente para não atrapalharem o bate-papo e a digestão.

Tradicional tenda da Flipinha, na Flip de 2022, em Paraty
Tradicional tenda da Flipinha, na Flip de 2022, em Paraty - Zanone Fraissat/Folhapress

Isso é profundamente problemático quando falamos de um evento como a Flip. Por dezenas de motivos.

Se você se sensibiliza com argumentos econômicos, o segmento de livros infantis, juvenis e educacionais representou até o momento 21% do faturamento do mercado editorial em 2023. Estamos falando de quase R$ 400 milhões. Os dados são do último Painel do Varejo de Livros no Brasil, pesquisa feita pela Nielsen e pelo Snel, o sindicato dos editores.

Se preferir falar sobre qualidade, o Brasil tem produção robusta para esse público. O país é referência, é reconhecido internacionalmente. Nunca é demais lembrar que Lygia Bojunga, Ana Maria Machado e Roger Mello venceram o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil. Anna Cunha, por exemplo, acaba de ser premiada na Bienal de Ilustração de Bratislava. E há vários outros casos.

Mas é possível pensar na contramão. Se autores estrangeiros são sempre convidados para vir à Flip, por que escritores e ilustradores internacionais ligados ao mercado infantil e juvenil não são lembrados na hora de formar a caravana rumo ao litoral fluminense?

Se o papo é sobre diversidade, é ótima a preocupação de ampliar vozes e convidar autores negros e indígenas. É fundamental equilibrar gêneros e contemplar todo o universo LGBTQIA+. É preciso atenção para chamar poetas, cronistas, ensaístas, tradutores e contistas, geralmente ofuscados pelos romancistas. É essencial furar a bolha formada por São Paulo, Rio de Janeiro, Europa e Estados Unidos. Mas e a literatura para crianças e os livros ilustrados? Existe diversidade real sem contemplá-los no palco principal?

Se o critério for contundência, devemos refrescar a memória e dizer que foi durante a Flipinha de 2017 que a professora Diva Guimarães requisitou o microfone na plateia e fez a intervenção mais importante, forte e cortante de toda a história da Flip. "Sou uma sobrevivente pela luta e pela educação", disse ela, aplaudida de pé. Uma mulher negra, neta de escravos e filha de lavadeira. A fala surgiu num dos raros eventos, na época sob curadoria de Joselia Aguiar, em que o livro para crianças subiu ao palco principal —mas, mesmo assim, não era parte da programação principal, apenas ocupava o mesmo espaço.

Se desejamos conversar sobre o futuro, o papel dessa literatura e desses autores é mais do que evidente. Leitores e hábito de leitura são formados desde a infância. O público infantojuvenil precisa se sentir parte da festa e merece ser tratado também como "principal". Porque, afinal, ele é.

Em tempos de encruzilhada, quando a Flip debate os seus próximos passos e discute o seu papel nos dias atuais, o futuro do festival também passa por essa discussão.

21ª Flip

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.