Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Thomas L. Friedman

Qual o acontecimento determinante de 2022: brexit, chexit, ruxit ou trumpit?

Se a China tivesse um governo democrático, alguém estaria querendo saber como se perdeu os EUA

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

The New York Times

Quando os historiadores do futuro olharem para 2022, terão muitas alternativas entre as quais escolher para a pergunta: qual a coisa mais importante que aconteceu no ano? O brexit, o chexit, o ruxit ou o trumpit?

Foi o derretimento da sexta maior economia do mundo, a do Reino Unido, provocado em parte pela insensata saída do país da União Europeia, em 2020? Terá sido a tentativa demente de Vladimir Putin de varrer a Ucrânia do mapa, que desacoplou a Rússia do Ocidente —o que descrevo como ruxit—, criando caos nos mercados de energia e alimentos? Foi a contaminação de quase o Partido Republicano inteiro pela Grande Mentira de Donald Trump segundo a qual a eleição de 2020 foi roubada —o trumpit—, que está erodindo o bem mais precioso de nossa democracia: a capacidade de efetuar uma transição de poder pacífica e legítima?

Público observa mural de imagens no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim - Noel Celis - 4.set.22/AFP

Ou foi a campanha da China sob a égide do líder Xi Jinping de efetuar o chexit –o fim de quatro décadas de integração progressiva da economia chinesa com o Ocidente, um fim simbolizado pela abreviação popularizada por meu colega do New York Times em Pequim Keith Bradsher para descrever onde multinacionais ocidentais hoje pensam em situar sua próxima fábrica: "ABC" ou "anywhere but China" (qualquer lugar menos a China).

É difícil apontar o mais importante. E o simples fato de citar as quatro opções juntas nos revela até que ponto 2022 virou um divisor de águas na história. Mas eu optaria pelo chexit.

Tivemos quatro décadas de integração econômica EUA-China que beneficiaram os consumidores americanos tremendamente. Elas abriram novas oportunidades de exportação para alguns e desemprego para outros, dependendo da indústria. Ajudaram a tirar centenas de milhões de chineses da pobreza extrema. Limitaram a inflação e ajudaram a prevenir guerras entre grandes potências.

Tudo contabilizado, teremos saudades dessa era agora que ela acabou, porque nosso mundo será menos próspero, menos integrado e terá menos estabilidade geopolítica. Mas ela terminou.

Como destacou em outubro o especialista sobre China da revista New Yorker Evan Osnos: "Em 2012, 40% dos americanos tinham uma visão desfavorável da China; hoje, segundo o Pew Research Center, mais de 80% pensam assim".

Se a China tivesse um governo democrático, alguém lá com certeza estaria querendo saber neste exato momento: "Como foi que perdemos os EUA?".

Os EUA não são isentos de culpa pela erosão desse relacionamento. Desde a Segunda Guerra, nunca tivemos um rival geopolítico que fosse quase um par em termos econômicos e militares. Nunca nos sentimos à vontade com o desafio crescente de Pequim, especialmente porque a China não foi impulsionada pelo petróleo, mas por suas economias, trabalho árduo e lição de casa —ou seja, disposição de fazer sacrifícios para alcançar a grandeza nacional, com ênfase forte sobre educação e ciência.

Nós éramos assim antes.

Mas a parte bem maior da culpa cabe a Pequim. Para compreender quão totalmente a China perdeu os EUA, você poderia começar por perguntar a ela: "Como se explica que vocês tinham o maior e mais poderoso lobby em Washington que não lhes custava um centavo e mesmo assim estragaram tudo?".

Me refiro ao Conselho de Negócios EUA-China e à Câmara de Comércio EUA-China. Esses grupos empresariais poderosos, representativos das maiores multinacionais americanas, defenderam vigorosamente por quase quatro décadas a ideia de que mais comércio com Pequim e mais investimentos na China e da China era mutuamente benéficos. A Câmara de Comércio da União Europeia na China fez o mesmo.

Hoje esses lobbies praticamente silenciaram. O que aconteceu? Foi a culminação de quatro tendências.

A primeira delas começou em 2003, pouco depois de a China ser admitida na Organização Mundial de Comércio (graças aos EUA), quando o principal defensor das reformas de mercado no país, o primeiro-ministro Zhu Rongji, renunciou. Zhu queria que empresas americanas estivessem presentes na China porque pensava que as empresas chinesas precisavam competir com o melhor em seu próprio território para poderem competir com eficácia no mundo.

Maquinário organiza contêineres no porto Yantian, em Shenzen, na província sulista de Guangdong - Jade Gao - 13.jul.22/AFP

Mas Zhu encarou oposição da parte de muitas províncias do interior, dominadas por indústrias estatais que não tinham interesse nem capacidade de competir globalmente do modo que as litorâneas podiam. E essas províncias do interior ganharam influência crescente.

Quando a China ingressou na OMC e ganhou acesso imenso aos mercados ocidentais, livre de tarifas ou com tarifas reduzidas, prometeu assinar um acordo lateral da OMC sobre contratos de fornecimento a governos que teria limitado sua capacidade de discriminar fornecedores estrangeiros na hora de fazer compras enormes para o governo. Mas a China nunca chegou a assinar esse acordo. Em vez disso, continuou a direcionar seu tremendo poder de compra do Estado para indústrias estatais —e continuou a subsidiar essas indústrias.

Muitas indústrias chinesas simplesmente copiaram ou roubaram propriedade intelectual de empresas ocidentais que haviam montado fábricas na China. As locais então aproveitavam o mercado doméstico protegido para ganhar mais escala e competiam com essas mesmas empresas ocidentais tanto em território chinês quanto no exterior. E ainda eram subsidiadas por Pequim.

Não surpreende que um executivo americano que trabalhou por anos na China me tenha dito, depois de Trump lançar sua guerra comercial com Pequim, que Trump não era o presidente americano que os EUA mereciam, mas o que a China merecia. Alguém precisava deixar claro quais eram os interesses de Washington nesse jogo.

Agora Xi fez o mesmo do lado dele. Como disse o presidente da Câmara de Comércio da UE na China, Joerg Wuttke, a eleição de Xi para um inusitado terceiro mandato, com base numa plataforma que destaca o marxismo e a ideologia em detrimento dos mercados e do pragmatismo, "diz que a abertura da economia chinesa não vai continuar". "Precisamos supor que a China está se distanciando de outros países e vai construir um modelo contrário ao modelo ocidental liberal, orientado pelo mercado."

A segunda tendência data do período pós-praça da Paz Celestial, em 1989, quando a liderança do Partido Comunista Chinês se esforçou para esfriar as aspirações democráticas dos jovens locais, usando uma mangueira anti-incêndio de hipernacionalismo.

E isso me conduz à terceira tendência: uma política externa chinesa muito mais agressiva que está tentando afirmar sua hegemonia em toda a área do mar do Sul da China, assustando os vizinhos principais: Japão, Coreia do Sul, Vietnã, Índia e Taiwan.

Mas a última tendência pode ser a mais desagradável de todas: em vez de importar vacinas eficazes produzidas no Ocidente para controlar a pandemia, a China está aplicando uma política de Covid zero que utiliza o isolamento de cidades inteiras além das novas ferramentas do estado de vigilância: drones, reconhecimento facial, câmeras de TV de circuito fechado posicionadas em toda parte, rastreamento de celulares e até mesmo rastreamento de frequentadores de restaurantes, que são obrigados a apresentar um código QR para serem escaneados e registrados.

Parece uma estratégia de Xi para impedir que tanto a Covid quanto a liberdade se disseminem.

Confesso que não gosto de usar o termo "China". Prefiro "o um sexto da humanidade que fala chinês". Isso capta a verdadeira escala daquilo com que estamos lidando. Quero ver o povo chinês prosperar —isso faz bem ao mundo. Mas ele está seguindo o caminho errado. E, quando um sexto da humanidade segue uma direção errada em nosso mundo ainda altamente conectado —a China, por exemplo, ainda possui quase US$ 1 trilhão em títulos de dívida do Tesouro americano—, vamos todos sentir sua dor.

Tradução de Clara Allain 

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.