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Museu das Favelas: Como mostrar aquilo que se procurou esconder por tanto tempo?

Novo espaço em São Paulo intriga pelos contrastes entre o palacete e o barraco, a exclusão e a inserção, o presente e o futuro

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Mauro Calliari
São Paulo

Quando o Governo de São Paulo anunciou o projeto de um museu das favelas, havia uma expectativa. Como lidar com um tema tão difícil e ao mesmo tempo tão presente?

Como explicar a quem nunca morou numa favela como são as ruas, as casas, a convivência com os vizinhos, a relação com os poderes institucionais?

Instalação no Museu das Favelas, em São Paulo - Divulgação

E como abordar um tema tão diverso na forma e nos nomes? Favela ou comunidade? Morro, mocambo, vila, periferia, quebrada? O que Heliópolis, a Rocinha, a vila Mangue do Recife, as palafitas de Manaus, ou, indo mais longe, Kibera, no Quênia, uma das maiores favelas do mundo, têm em comum?

O desafio também se aplica a quem vai falar do novo museu. O risco da abordagem não pode, porém, ser maior que a importância do assunto. É preciso tratar disso, afinal, a favela faz parte da vida de quase todas as grandes cidades brasileiras, é um fenômeno urbanístico, econômico, antropológico e social.

Portanto, tomando o necessário cuidado e empatia, vamos ao museu.

A aproximação ao Museu das Favelas é, em si, uma experiência de contrastes. No que já foi o bairro mais elegante de São Paulo, há uma decadência palpável, casas abandonadas, calçadas ocupadas por barracas, lojas fechadas, a cracolândia logo ali. A chegada ao museu é um alívio e um espanto.

O casarão está instalado o Museu é nada mais, nada menos do que o Palácio dos Campos Elíseos, que depois de ser a residência de um cafeicultor, acomodou a sede do Governo do Estado de São Paulo entre 1915 e 1967, quando um incêndio acelerou a mudança para o Palácio dos Bandeirantes.

A restauração mostra uma joia histórica, da arquitetura de linhas francesas ao luxo interno —espelhos de Veneza, maçanetas de porcelana, fechaduras e dobradiças dos Estados Unidos— e já começa no jardim bem cuidado.

A escolha do local não é um acaso, claro. O Museu das Favelas vai chamar pessoas para um lugar que nunca frequentaram como convidados. Também é uma escolha logística, para facilitar o deslocamento a partir de outras regiões. De ônibus, metrô ou trem, chega-se de qualquer extremo da cidade até a avenida Rio Branco.

Conversei com a Carla Zulu, responsável pelas relações institucionais e porta-voz do museu. A proposta, diz ela, é ter um espaço que incentive principalmente a presença de quem mora nas favelas.

Para esse público, o museu foca as relações e a tecnologia. É a favela das costureiras, dos empreendedores, da logística criativa e dos startups. É uma face festiva, orgulhosa, inusitada, que se manifesta também na postura dos funcionários, a maioria moradores de favelas da capital paulista.

Para Carla, as mazelas da favela já são mostradas nos programas jornalísticos, que contam da falta de água e esgoto, da precariedade e das doenças. O que cabe ao museu é mostrar o outro lado dessa história: a utopia, o futuro, a ação afirmativa e uma possibilidade de um futuro. "Queremos mostrar as potências", como os R$ 177 bilhões do PIB que movimentam a economia das favelas. Quando visitei o museu, na semana seguinte após a inauguração, em dezembro, as exposições temporárias já davam o tom desse contraste.

Um dos desafios é justamente acrescentar as histórias invisíveis à história oficial. Vai ser interessante ver a casa de um barão do café se entrelaçar com o surgimento das favelas. Provavelmente, vamos ter que retroceder ao século 19, ao início da explosão urbana paulistana, aos cortiços, às casas de aluguel, ao processo de urbanização até chegar às periferias e às favelas. Também há que falar da primeira favela do Brasil, no Morro da Providência, no Rio, do nome "favela" que evoca o lugar de onde vieram os soldados que combateram em Canudos, e, claro das pessoas. Carolina Maria de Jesus e seu livro essencial, "Quarto de Despejo", já estão lá nas placas ao longo do jardim.

É uma longa história, mas vai ser bonito vê-la com diferentes pontos de vista. A favela é um tema transversal, tem a ver com a pobreza, a migração, a urbanização caótica, e principalmente com as escolhas feitas pelas administrações ao longo do tempo. Invisibilidade não existe por acaso. Basta lembrar que até uns 20 anos, os guias de ruas simplesmente deixavam áreas de favelas em branco na página, como se lá não houvesse ruas, casas e pessoas.

Na cidade formal, tudo parece ser regulado, da altura dos prédios à distância da calçada, as fachadas, o uso, os horários. Na cidade informal, a legislação omissa deixou tudo em aberto. Até 1970, as favelas acomodavam menos de 2% da nossa população. A partir do boom de migração e da falta de moradia, elas explodiram e hoje representam quase 17%, dois milhões de pessoas.

Para quem não mora numa favela, o museu também terá o desafio de proporcionar o contato com uma realidade que precisa ser exposta. Quem nunca entrou numa favela talvez aprenda muito só de reconhecer uma realidade diferente da sua. O empreendedor Edu Lyra, responsável por uma série de iniciativas contra a precariedade chamada Gerando Falcões, já disse que seu sonho é que a pobreza desapareça do Brasil e que só possa ser vista num museu. Enquanto ela existe, é preciso mostrá-la e combatê-la.

Essa faceta deve aparecer com mais força no museu durante 2023, quando será inaugurada a parte do andar de cima, com as exposições permanentes, um café e o local de eventos, que devem dar um pouco mais de densidade à visita. Vale a pena também esperar pelo prometido inventário que vai mapear todas as favelas do Brasil.

O futuro das favelas tem a ver com o futuro do país. O museu pode vir a ser uma sementinha conceitual, um lugar de história, encontro e de discussão, que pode ajudar a tornar visível aquilo que era invisível.

MUSEU DAS FAVELAS

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