Descrição de chapéu Pelé, o Edson

Pelé transitou entre políticos, mas se frustrou quando foi um deles

Rei do Futebol também teve problemas com a ditadura e com Havelange em sua aposentadoria da seleção

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Em 1984, Ronaldo Kotscho, histórico fotógrafo da Placar, embarcou em uma missão particular: fotografar Pelé com uma camiseta em favor das Diretas Já. O então diretor da revista, Juca Kfouri, não levou fé na ideia, sob a justificativa de que outras revistas e jornais também haviam tentado e não tinham conseguido.

Mas Kotscho, chamado de Alemão pelos colegas, insistiu e conseguiu ao menos a passagem para o Rio de Janeiro, onde Pelé gravava o filme "Pedro Mico". Ao chegar no Morro do Pavãozinho, palco das filmagens, o fotógrafo se aproximou do Rei do Futebol, que pressentiu o motivo da visita. "Alemão, seu canalha, já sei o que veio fazer."

O jornalista precisou insistir muito para que o tricampeão do mundo aceitasse ser fotografado com a camisa. Era um modelo vestido pela seleção brasileira à época, mas com a inscrição "Diretas Já!" em letras garrafais. Pelé deu dez segundos para Kotscho registrá-lo. "Apertei o botão da minha câmera Nikon e foi como ouvir uma orquestra", relata o fotógrafo.

A foto, que foi para a capa da Placar, ilustra uma das raras manifestações públicas de Pelé sobre a política. E no caso das Diretas, particularmente, tratou-se de uma posição a respeito de um tema (o fim da ditadura) sensível à trajetória do Rei, acusado de servir aos interesses do regime militar enquanto jogador.

No documentário lançado pela Netflix em 2021, o ex-atleta é confrontado sobre sua relação com a ditadura. Nas imagens da produção, aparece o aperto de mão com o general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil à época do tricampeonato mundial, em 1970, período de maior repressão durante o governo militar.

Pelé ergue a Jules Rimet ao lado de Emílio Garrastazu Médici - Roberto Stuckert - 23.jun.70/Folhapress

"Os governantes militares precisavam reivindicar legitimidade por vias alternativas ao voto popular. Para isso, idealizaram o projeto do 'Brasil Grande', cujo propósito era enaltecer as conquistas e as virtudes nacionais. Pelé era a maior encarnação disso. Não por acaso, nesse período –e mesmo depois– o futebol e a seleção foram investidos de uma simbologia patriótica mais profunda que qualquer figura civil ou militar da época", diz Aníbal Chaim, doutor em Ciência Política pela USP.

Entretanto, apesar do sucesso momentâneo do regime em capitalizar a popularidade de Pelé e do escrete brasileiro campeão mundial, houve um episódio de conflito entre o Rei e o governo militar ainda na gestão de Médici.

Logo após a conquista no México, Pelé decidiu que se aposentaria da seleção brasileira. Na sua visão, era uma grande oportunidade de encerrar no auge esse capítulo de sua biografia e aproveitar a imagem de Atleta do Século para impulsionar sua carreira empresarial. O governo, porém, queria manter Pelé por mais tempo a serviço da equipe nacional.

"O Pelé vai ter um enfrentamento com o governo que você pode caracterizar como um dos enfrentamentos mais fortes de um atleta brasileiro com o regime militar. Não foi motivado por um princípio político, por uma discordância à ditadura. Foi uma divergência de interesses, dos interesses do regime e dos interesses do Pelé para a sua carreira empresarial", diz José Paulo Florenzano, coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do Departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em 1971, Pelé fez duas despedidas da seleção brasileira: a primeira no Morumbi, em amistoso contra a Áustria, que terminou empatado em 1 a 1, e a segunda no Maracanã, diante da Iugoslávia, em novo empate –desta vez por 2 a 2. Havia, porém, uma série de celebrações planejadas para a aposentadoria do Rei, mas que foram canceladas em razão da queda de braço do jogador com a CBD (atual CBF), presidida por João Havelange.

O dirigente, que almejava a presidência da Fifa, organizou a Minicopa em 1972 e queria a presença do Atleta do Século. Inclusive, o ameaçou com o decreto-lei 5.199, que, segundo ele, lhe outorgava o direito de convocar qualquer jogador para a equipe nacional.

Jarbas Passarinho, então ministro da Educação e Cultura que tinha montado uma comissão para os festejos, desfez o órgão diante da recusa de Pelé em seguir se apresentando pela seleção.

Apesar das pressões enfrentadas, Pelé insistiu com o encerramento de sua trajetória a serviço do selecionado, coroada com três títulos de campeão do mundo.

"A Cerimônia do Adeus, como eu chamo esse processo, tem uma luta simbólica muito importante. Havia um discurso também de colocar o negro no seu lugar. Quando o Pelé reivindicava seu direito de abandonar a seleção brasileira, ele queria assumir a atividade empresarial, de negócios, e o discurso era o discurso de uma ordem sócio-racial, que designava as quatro linhas do campo como o lugar do negro", afirma Florenzano.

"Tanto o João Havelange, quanto o Médici e depois o Geisel, jogaram a opinião pública contra o Pelé. De caracterizá-lo como desertor, traidor, mercenário. Pelé é uma figura muito mais complexa do que se imagina e acredita. A estratégia dele não era a do enfrentamento, como no caso do Muhammad Ali. Mas é fundamental falar em um legado do Pelé. Essa luta dele de ocupar um lugar de empresário é importantíssima. E não é por acaso que ele foi criticado por setores da imprensa, da opinião pública, do governo, que queriam que ele ocupasse apenas o lugar de atleta."

Em sua ida aos Estados Unidos para atuar pelo New York Cosmos, arquitetada em parte pelo então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, Pelé iniciou sua tradição de fotos com os presidentes norte-americanos. Richard Nixon, Gerald Ford, Jimmy Carter, Ronald Reagan, Bill Clinton, Barack Obama... Todos estes apertaram a mão do Rei.

No Brasil, claro, não foi diferente. Contudo, mais do que apertar a mão para uma foto, houve quem quisesse contar com Pelé em seu próprio governo.

"Depois que a ditadura acabou, fui sondado pela maioria dos presidentes para ser ministro dos Esportes: primeiro por Tancredo Neves, em 1985; depois pelo sucessor dele, José Sarney, e então por Fernando Collor, quando ele venceu a eleição em 1989. Sempre recusei. Quando, porém, Fernando Henrique Cardoso foi eleito em 1994, o convite se repetiu. Então concluí que era o momento certo de aceitar", diz ele em "Pelé: a Autobiografia", publicada em 2006.

No livro, Edson Arantes do Nascimento relata que a experiência como ministro não foi positiva. Sua gestão defendia dois pilares: a abertura para que os clubes se tornassem empresas e o fim da lei do passe, cujo projeto seria sancionado por FHC em 1998 e se chamaria "Lei Pelé".

Frustrado, deixou o ministério em 1998, pouco antes do início da Copa do Mundo, na qual trabalhou como comentarista da Globo.

"Não sabia que fazer política é lutar uma batalha atrás da outra. Foi uma curva íngreme de aprendizado. O que mais me deprimiu em Brasília foi descobrir que os políticos estavam mais interessados em ajudar a si mesmos do que aos jovens", disse Pelé, acostumado a transitar com habilidade entre políticos, mas que não gostou de ser um deles.

LEIA MAIS SOBRE PELÉ

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.