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Livros em 2022 viram subida de preço, brilho de mulheres e censura de volta à espreita

Mercado editorial surfou boa maré em ano impulsionado por fenômenos como TikTok, Colleen Hoover e Annie Ernaux

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sombras de pessoas contra livros à venda

Público na Feira do Livro que teve sua edição inaugural em junho deste ano, no Pacaembu, em São Paulo Ronny Santos/Folhapress

São Paulo

O mercado de livros entrou em 2022 com um desafio estranho. Em vez de correr atrás do prejuízo, como tantos setores da cultura, sua preocupação era manter uma inusitada maré de sucesso.

Ao que tudo indica, deu certo. A percepção dos editores é que o patamar de novos leitores que chegou com a pandemia veio para ficar, já que as vendas continuaram robustas. O faturamento do mercado até aqui foi de R$ 2,27 bilhões, contra R$ 2,11 bilhões em 2021, puxado por galinhas dos ovos de ouro como o TikTok e o álbum de figurinhas da Copa.

Se o ecommerce pôs o pé no freio, as feiras, eventos e livrarias, que tinham sofrido o maior baque com o vírus, ressurgiram na cena com brilho e deram boas-vindas a novas empreitadas. O que quer dizer que o ano foi melhor para os lançamentos, que se beneficiam mais dessas vitrines.

Mas as editoras ainda exploram maneiras de apresentar novidades a um leitor já acostumado a ter na cabeça o que quer comprar quando abre o navegador da internet. Uma fórmula que se mostra cada vez mais efetiva são os tiktokers, influenciadores com força sem precedentes em empolgar um público mais jovem para a leitura.

A americana Colleen Hoover, para citar o maior exemplo, viralizou por lá e acabou representando 25% de toda a receita do Grupo Record em 2022, segundo conta a vice-presidente Roberta Machado. Foi com folga a campeã de vendas do ano no Brasil, como era previsível para quem via toda semana um punhado de seus livros ocuparem as listas de best-sellers.

Esse momento de bonança compensou o enorme abacaxi que as editoras precisaram descascar com a subida vertiginosa do preço do papel. É o primeiro tema lembrado por Raquel Cozer, diretora editorial da HarperCollins, quando começa a falar do ano.

Fazer livro, segundo ela, está ficando muito caro, um movimento alavancado pela instabilidade mundial de insumos provocada por fatores como a Guerra da Ucrânia. Algumas editoras estão aumentando sensivelmente seus preços de capa, outras apertam suas margens de lucro.

Mas, se o valor do livro aumenta, fica mais difícil ampliar a base de leitores. Um matemática difícil, que fica um pouco aliviada pela perspectiva de que, com Paulo Guedes de saída do governo, a ideia de taxar livros esteja morta e enterrada.

A situação financeira do país também sugere um potencial refluxo no faturamento, afirma Bruno Zolotar, diretor de marketing da Rocco, para quem os números mais baixos da Black Friday, em comparação com o ano passado, podem indicar o começo de um período de gastos mais comedidos com leituras.

Antes disso deu tempo, contudo, de leitores gastarem mundos e fundos em uma das edições da Bienal do Livro de maior público da história, em julho; de conhecerem uma nova feira literária no Pacaembu, organizada pela Associação Quatro Cinco Um em junho; e voltarem a Paraty, no litoral fluminense, em uma Flip extemporânea, num novembro de calor e Copa do Mundo.

Foi quando veio ao Brasil uma Nobel de Literatura recém-eleita, Annie Ernaux, na primeira vez que uma vencedora do prêmio veio ao Brasil sem nem ter feito ainda o discurso de agradecimento. Quem agradeceu foi o público, que abarrotou suas palestras e a tornou a autora mais vendida do evento.

A escolha de uma escritora que revolucionou a maneira como se contempla e narra a própria biografia representou a coroação de um estilo cada vez mais em voga nas estantes, a autoficção.

A programação da Flip foi toda dominada por mulheres, aliás, assim como o panorama da literatura no geral. Livros de Carla Madeira, Eliana Alves Cruz e Camila Sosa Villada passaram por mãos de cada vez mais leitores, e os prêmios não ficaram alheios à onda.

O Jabuti selecionou uma poeta de 30 anos, Luiza Romão, como sua grande vencedora —e só havia mulheres finalistas na categoria de romance literário, conquistada pelo rugido da onça de Micheliny Verunschk. Um cenário impensável anos atrás.

Como nem tudo são flores, duas das vozes femininas mais aguerridas da literatura brasileira se calaram. Lygia Fagundes Telles e Nélida Piñon morreram após carreiras admiradas tanto na arte literária quanto na propagação institucional do livro, tendo sido pilares pioneiros da Academia Brasileira de Letras.

A entidade, aliás, perdeu a chance de adicionar o ensaísta Silviano Santiago a seus quadros. O autor de "Machado" abriu mão de sua candidatura, mas foi bem recompensado com o Camões, principal prêmio lusófono pelo conjunto da obra.

Já a ABL incorporou a suas cadeiras nomes como Jorge Caldeira e Ruy Castro —que, aliás, foi figura central num debate que tomou o mundo literário no começo do ano, quando a Semana de Arte Moderna de 1922 completou seu centenário.

Afinal, o evento era "paulistocêntrico" demais para ser considerado um marco revolucionário? As artes brasileiras teriam engatado a marcha da modernização sem aqueles dias passados no Theatro Municipal?

Como todo bom debate, esse não chegou a uma resposta final. Mas num ano em que o encontro do Brasil independente consigo mesmo esteve em constante pauta, também pelo bicentenário do grito do Ipiranga, é curioso o quanto se voltou a falar de Portugal.

José Saramago, o único Nobel do nosso idioma, completou seu centenário. Fernando Pessoa, a outra pedra basilar da literatura portuguesa do último século, ganhou uma biografia maciça e uma série de novas edições. E a Bienal trouxe uma comitiva vasta de escritores para homenagear o país que colonizou o Brasil.

Mas os ventos de independência sempre sopram mais forte que qualquer amarra. Basta notar como, diante de uma sanha de censura cada vez mais forte nos Estados Unidos contra livros como o quadrinho "Maus", de Art Spiegelman, a reação do público costuma ampliar as vendas em vez de provocar seu sumiço.

A obra mais vetada naquele país, "Gender Queer", reverberou mais do que nunca e sairá no Brasil ano que vem. E o indiano Salman Rushdie teve uma onda mundial de solidariedade diante do ataque violento e covarde que sofreu de um homem crítico ao que ele escrevia.

Annie Ernaux comentou na Flip, sob forte comoção, como ficava satisfeita que sua escrita seja fonte de liberdade. No fundo, toda literatura é irmã da liberdade —e está aí uma coisa que não mudará em 2023.

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