Descrição de chapéu Financial Times

O extraordinário sucesso do consumo de luxo vai acabar um dia?

Ascensão da LVMH para se tornar primeira empresa de US$ 500 bilhões na Europa ilustra crescimento aparentemente irrefreável do setor

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Paris, Londres e Hong Kong | Financial Times

Sharon Wong decidiu que merecia um pouco de indulgência enquanto percorria a Louis Vuitton na loja de departamentos La Samaritaine, um dos principais destinos para o consumo de luxo em Paris.

"É cara, mas estou pensando nela faz alguns meses", disse a gerente de marketing de Londres, 30 e poucos anos, enquanto examinava os modelos da Petit Sac Plat, uma pequena bolsa retangular que custa cerca de 1.500 euros (R$ 8.250). "Eu economizo um pouco, penso nelas como investimentos. Os grandes nomes sempre terão valor, principalmente os estilos com história."

Ao virar a esquina, um grupo de italianos de terno e uma família alemã se aglomeravam no saguão do hotel cinco-estrelas Cheval Blanc, cujos quartos custam a partir de 2.200 euros (R$ 12 mil) por noite e, segundo os funcionários, está com ocupação de 70% ou mais.

Bernard Arnault usa terno escuro, camisa branca e gravata azul. Ele é um homem branco e grisalho, com cabelo repartido para a direita. Ele está atrás de um púlpito preto, com um retângulo bege, com o logo da LVMH em marrom. Atrás de de Arnault, há uma tela com projeção de slides.
No comando do maios conglomerado de luxo do mundo, Bernard Arnault comparece à reunião geral da LVMH (Moët Hennessy Louis Vuitton), em Paris - Alain Jocard/AFP

O hotel, La Samaritaine e a Louis Vuitton têm uma coisa em comum: todos fazem parte da LVMH. O conglomerado de luxo controlado por uma família foi transformado em potência por Bernard Arnault por meio de aquisições em série desde a década de 1990, dando à família uma fortuna que hoje vale cerca de US$ 212 bilhões, ou mais de R$ 1 trilhão.

A empresa se tornou a primeira da Europa a ultrapassar o limite de avaliação de mercado de US$ 500 bilhões (R$ 2,5 trilhões) nesta semana, e a única a ser classificada entre as dez maiores empresas globais.

A ascensão da LVMH, que este ano permitiu a Arnault ultrapassar Elon Musk, da Tesla, e Jeff Bezos, da Amazon, como indivíduo mais rico do mundo, é uma prova da surpreendente ascensão e resiliência do setor de luxo na última década, impulsionado por um grande mercado americano ainda em expansão e o apetite voraz da classe média-alta da China, em rápido crescimento.

Crises financeiras, a pandemia, turbulências geopolíticas, inflação em espiral e o aperto no custo de vida pouco fizeram para impedir a ascensão do setor de luxo, que inclui bens e experiências pessoais, incluindo viagens e hospitalidade.

Depois de se contrair acentuadamente quando o mundo se trancou no início de 2020, o setor se recuperou rapidamente para 1,15 trilhão de euros (R$ 6,3 trilhões hoje) em 2021, com compradores entediados, cheios de economias e cheques de ajuda do governo, esbanjando. Em seguida, desafiou as expectativas novamente ao crescer mais 19% a 21% em 2022, segundo estimativas da consultoria Bain.

A LVMH lidera o caminho e está superando a concorrência. As ações do grupo passaram de 81 euros (R$ 445) no início de 2010 para mais de 900 euros (R$ 4.950) esta semana. Questionado em uma reunião de acionistas em abril se consideraria a divisão de ações para tornar a propriedade da empresa mais acessível, Arnault vetou a ideia. "Vou desapontá-lo, mas a desejabilidade é proporcional ao valor", disse ele. "As ações da LVMH também são um produto de luxo."

Com os temores de uma recessão global persistente, porém, o crescimento do setor pode continuar inabalável? Tudo depende dos Estados Unidos e da China, os dois motores de crescimento do luxo e seus maiores mercados consumidores.

A maioria das empresas de luxo sofreu um impacto em seus negócios na China no final do ano passado, devido ao último suspiro das restrições da Covid-19. Mas os números de vendas no primeiro trimestre da LVMH e da Hermès, o segundo maior grupo de luxo em valor de mercado, indicam que a recuperação na China dos efeitos prolongados das políticas estritas de Covid zero já está em curso e deverá se acelerar no segundo semestre do ano, à medida que as viagens aumentarem.

"Os consumidores chineses costumavam representar cerca de um terço das receitas de luxo", diz Caroline Reyl, chefe de marcas premium da Pictet Asset Management e acionista de grupos de luxo como LVMH, Richemont, Hermès e Moncler. "Isso caiu para cerca de 20% durante a Covid. Não há razão para que não volte a um terço."

Os analistas estão mais cautelosos com a desaceleração do crescimento nos EUA. O Morgan Stanley espera que os gastos com luxo caiam para uma porcentagem de um dígito baixo, tanto lá quanto na Europa, em 2023.

Após anos de crescimento extraordinário, analistas e investidores acreditam que se deve esperar certa moderação. "O luxo continuará a crescer de 15% a 20% para sempre? Não, essa não é a lógica", diz Erwan Rambourg, diretor global de pesquisa de varejo e consumo do HSBC. "Haverá certa moderação em algum momento."

Mas mesmo essa moderação provavelmente será modesta; ele espera que o setor cresça ao redor de 15% este ano e 10% em 2024. Isso se deve em parte ao seu apelo global. O Morgan Stanley prevê que os gastos no Oriente Médio aumentem 15% em 2023, enquanto a Coreia do Sul e o Japão registrem crescimento de um dígito.

"O setor de luxo é um dos poucos que é verdadeiramente global, as marcas de sucesso fazem sucesso em todos os lugares", diz Roberto Costa, diretor de banco de luxo global do Citi. "Empresas como a Prada: [os consumidores] a conhecem nos Estados Unidos, na China, na Argentina. Portanto, se faltar demanda em um lugar, haverá em outro."

No entanto, nem todas as marcas de luxo são criadas iguais. Enquanto a ponta superior do setor –liderada por Louis Vuitton, Dior, Gucci (propriedade da Kering) e as casas independentes Chanel e Hermès– deverão continuar avançando globalmente. Marcas mais fracas e de médio porte expostas ao mercado mais amplo de classe média, como Coach e Ralph Lauren, começam a sentir alguma pressão.

"Não se trata de regiões, mas da força de marcas e empresas", diz Enrico Massaro, chefe de consumo e varejo Emea do banco de investimentos Barclays. "O crescimento está alocado desproporcionalmente para marcas fortes, há algum tempo há uma polarização, e vai continuar."

DESEJO DE VENDER

Por cerca de 1.500 euros cada (R$ 8.250), as bolsas Petit Sac Plat são consideradas parte da oferta acessível da Louis Vuitton, projetada para atrair compradoras ambiciosas, como Sharon Wong.

Foram consumidores como ela, não os ultrarricos, que estimularam o crescimento da indústria e transformaram a Louis Vuitton na primeira marca de luxo do mundo, com receita anual de 20 bilhões de euros (R$ 110 bilhões).

"Não vendemos produtos [a maioria da Louis Vuitton] para pessoas ricas, mas sim para pessoas que têm dinheiro e querem se dar o luxo", diz Jean-Jacques Guiony, diretor financeiro da LVMH. "A vantagem é que esse grupo é muito, muito maior que os super-ricos. Acreditamos que as classes médias-altas continuarão prosperando, e adaptaremos produtos e marketing para elas."

As definições de classe média variam, mas seu crescimento foi mais pronunciado na China. Estimativas conservadoras situavam a classe média em cerca de 350 milhões de pessoas –ou 25% da população mundial, mais que toda a população dos EUA– em 2018, cerca de 1% a mais que a população na virada do milênio.

Os ricos, embora em número muito menor, também cresceram substancialmente e desenvolveram um gosto por produtos de luxo, permitindo que marcas como Chanel, Dior e Hermès –cujas bolsas "assinatura" custam mais de 20 mil euros (R$ 110 mil) e geralmente só podem ser compradas após um longo período na lista de espera– crescessem aos saltos.

"Não poderíamos acreditar há dez ou 20 anos que essas marcas seriam capazes de crescer [tanto] devido ao seu caráter exclusivo (...) mas estamos num mercado em crescimento", afirma Guiony.

Esse apetite parece estar voltando a funcionar à medida que as restrições da Covid zero na China diminuíram no principal mercado em crescimento para o setor. No aplicativo de rede social chinês Xiaohongshu, milhares de usuárias publicaram postagens reclamando da falta de bolsas e das longas filas nas lojas Chanel em cidades da China, Hong Kong e Macau.

Essas reclamações pouco fizeram para deter Mingyou, uma trabalhadora em tecnologia de 33 anos que mora na cidade de Shenzhen, no sul da China, e pediu para ser identificada por um apelido. No final de março, diz ela, tentou comprar uma cobiçada bolsa Chanel, mas descobriu que estava esgotada.

"Então eu recorri à Hermès. Mas perdi minha bolsa favorita da Hermès só porque cheguei à loja 15 minutos depois de outra cliente", disse ela. No final, contentou-se com uma pulseira de relógio e uma gravata da célebre casa parisiense, por uma conta total de 6.100 yuanes (R$ 4.400).

Para cultivar esse tipo de desejo, a indústria do luxo impõe limites à disponibilidade de determinados produtos. Mas para capturar o máximo possível do mercado as marcas "top" também aumentaram a oferta de artigos "acessíveis", que custam cerca de 3.000 euros (R$ 16.500), ao mesmo tempo que elevaram os preços das ofertas da prateleira superior para promover um senso de exclusividade. O Barclays estima que a LVMH aumentou seus preços em geral cerca de 8% no ano passado, mas o grau difere entre produtos e marcas.

A Bottega Veneta, de propriedade da Kering, aumentou os preços de suas bolsas "cassette" em 12%, para cerca de 2.000 euros (R$ 11.000) entre outubro e janeiro, segundo o HSBC, enquanto a Chanel enfrentou resistência das clientes depois de aumentar o preço de algumas bolsas em até 74% desde 2019 –posição que a empresa defendeu, dizendo que o custo dos materiais e a garantia de qualidade da fabricação aumentaram.

"A indústria de luxo, especialmente em suas principais categorias de acessórios e artigos de couro, está trabalhando numa estratégia de 'elevação' por meio de aumentos de preços", diz Joëlle de Montgolfier, vice-presidente executiva de varejo e luxo da Bain. No ano passado, 70% do crescimento das vendas de produtos de couro foram explicados por aumentos de preços "com apenas uma pequena porcentagem explicada pelo volume".

Como prova da teoria de Arnault, esses aumentos não diminuíram o desejo. "Até agora no setor não há muita elasticidade de demanda", diz Costa, do Citi. "O teto [do preço] é: desde que haja qualidade e experiência, as pessoas estão dispostas a aceitar."

NUVENS DE TEMPESTADE

A perspectiva do luxo não é totalmente um céu de brigadeiro. Depois de vários anos de lucros recordes sustentados por aumentos de preços, alguns custos começam a subir novamente, e espera-se que reduzam o crescimento da margem no próximo ano.

Por exemplo, a Hermès deu a seus funcionários aumentos de cerca de 7% no ano passado para manter os salários competitivos em meio à inflação e para recompensá-los por um ano de lucros abundantes.

Isso pode contribuir para "uma leve pressão de margem este ano", diz Thomas Chauvet, do Citi. "Mas quem teria pensado no início da Covid que as margens iriam subir em vez de cair?"

Também há sinais de que o ímpeto no maior mercado de luxo, os Estados Unidos, está começando a desacelerar. Na Kering, cujas vendas foram mais fracas do que na LVMH ou na Hermès, as vendas nos EUA caíram nos primeiros meses de 2023.

O ritmo de crescimento das vendas na LVMH também se estabilizou nos primeiros meses do ano, ainda crescendo 8%. "Por região, os EUA, como esperado, tiveram o crescimento mais lento, apesar de serem mais resilientes do que pensávamos", observa Rambourg do HSBC.

Essa retração é mais pronunciada entre o que o executivo-chefe da Ralph Lauren, Patrice Louvet, chama de "clientes voltados para o valor", que tendem a comprar nas lojas de desconto da marca. Como outras marcas de luxo acessíveis com foco nos EUA, como a Coach, o crescimento desacelerou no primeiro trimestre na fornecedora de luxo Americana.

"Vimos que esse grupo está mais pressionado", disse ele ao Financial Times. "Esse consumidor está sentindo os efeitos da inflação e está sendo mais criterioso."

Isso significa evitar compras mais frívolas, explicou, preferindo itens "essenciais" como suéteres, camisas Oxford de algodão e linho e paletós esportivos. "As pessoas ainda precisam comprar roupas."

Na LVMH de Arnault, no entanto, a festa parece longe de terminar.

Nas últimas duas semanas, a Louis Vuitton lançou novas campanhas brilhantes com a atriz e cantora Zendaya e o astro do futebol Lionel Messi. O rapper americano Jay-Z fez um show na Fundação Louis Vuitton em Paris, museu fundado e apoiado por Arnault, que contou com a presença da presidente-executiva da LVMH, além de Rihanna e Beyoncé.

Depois, Rihanna parou na sede de Paris para discutir sua marca de beleza "cult" de propriedade da LVMH, Fenty, enquanto a Louis Vuitton levará o mundo da moda para Seul esta semana para um desfile feminino pré-outono orquestrado pelo diretor da série distópica de sucesso "Squid Game".

O próprio Arnault não comparecerá, entretanto; ele estará em Nova York para a reabertura da loja-capitânia de dez andares da Tiffany. A LVMH comprou a famosa joalheria em 2021 por US$ 15,8 bilhões, em sua maior aquisição de todos os tempos.

A empresa não divulga números, mas afirma que a reforma envolveu "o maior investimento na história do luxo", segundo uma pessoa próxima à empresa –superando a reforma da "nave-mãe" da Dior na Avenue Montaigne, em Paris, que reabriu em 2022 e inclui um museu, dois restaurantes e um apartamento privado para receber clientes VIP.

As exibições de opulência não passaram despercebidas na França, no entanto, onde Arnault há muito é criticado como um avatar da desigualdade. Durante meses de manifestações contra o plano do presidente Emmanuel Macron de aumentar a idade da aposentadoria, alguns manifestantes pediram impostos mais altos para Arnault e a classe bilionária do país.

Mas as empresas de luxo argumentam que são fundamentais para a economia francesa como grandes empregadoras, contribuintes e impulsionadoras do crescimento. Aproximadamente um terço da recuperação da bolsa CAC40 desde o início do quarto trimestre do ano passado decorre do crescente interesse dos investidores por Hermès, Kering, LVMH e o grupo de beleza L'Oréal.

"As pessoas dizem que é uma vergonha para a França, que todos esses grandes grupos de luxo produzem coisas inúteis, então devemos nos livrar deles", disse Arnault. "Mas quantas pessoas empregamos na França? O luxo emprega um milhão de pessoas." Ele continuou afirmando: "Pagamos mais impostos do que qualquer empresa na França".

Enquanto houver um grupo demográfico global em crescimento, cuja riqueza esteja isolada da volatilidade da economia em geral, empresas como a LVMH, que dominaram a arte de explorá-la, se beneficiarão.

Nessa conjuntura, a única coisa que pode obscurecer as perspectivas em 2023 é "um grande acontecimento externo que venha estragar a festa", diz Reyl, da Pictet Asset Management, que espera que o crescimento normalize em 2024 e 2025 para "altos dígitos únicos".

"Em tempos difíceis, o consumidor de luxo não faz concessões", acrescenta ela. "Ele apenas compra menos produtos."

Adrienne Klasa , Lauren Indvik , Harriet Agnew e Gloria Li
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