Kamala busca recuperar popularidade e se afastar da imagem de vice decorativa

Em meio a relatos de embates com equipe de Biden, número 2 nos EUA tem baixa aprovação e vira alvo de republicanos

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Washington

Em janeiro, Kamala Harris tomou posse como vice-presidente dos Estados Unidos em meio a grandes expectativas, que hoje vão sendo, em parte, frustradas. Primeira mulher e primeira pessoa negra a chegar ao cargo na história do país, seu destaque no governo de Joe Biden é menor do que o esperado.

Soma-se a isso uma série de relatos de desentendimentos entre as equipes dela e do presidente, publicados pela imprensa americana nas últimas semanas.

A maior conquista da gestão Biden até aqui, a aprovação de um pacote de US$ 1,2 trilhão em investimentos em infraestrutura, ilustra a situação. Nas longas negociações que o governo teve de fazer pelo texto, ela deixou de ir a várias reuniões com parlamentares, segundo a CNN americana. Num dia de conversas que avançaram noite adentro, a vice manteve sua agenda e foi visitar um centro da Nasa. O movimento teria gerado incômodo em assessores da Presidência.

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, em sala de conferências de um hotel em Paris, na França - Sarahbeth Maney - 12.nov.21/Reuters

Para implantar o plano, sancionado nesta segunda (15), a Casa Branca criou uma força-tarefa para definir o destino de bilhões de dólares em obras, mas deixou Kamala de fora. O grupo é integrado por autoridades da Presidência e sete secretários, de áreas como energia, comércio, agricultura e trabalho. Pete Buttigieg, da pasta de Transportes, tornou-se a principal face dos anúncios sobre o pacote

Primeiro homem abertamente gay a ocupar um cargo no alto escalão, Buttigieg competiu nas primárias democratas no ano passado e, como Kamala, hoje é cotado como candidato à sucessão de Biden —caso o presidente não tente a reeleição em 2024, quando terá 81 anos.

As estatísticas pintam um futuro desfavorável a Kamala. Sua queda de popularidade ocorreu mais rapidamente que a de Biden: a taxa de rejeição superou a de aprovação em junho, dois meses antes de o movimento se dar com o presidente.

Hoje, ela é bem avaliada por 40,2% do eleitorado e rejeitada por 50,8%, segundo levantamento do site Real Clear Politics, que soma dados de várias pesquisas. O percentual é próximo do de Biden, que marca 41,5% e 53,2%, respectivamente.

Nos últimos meses, a vice tem aparecido pouco nas publicações em redes sociais de Biden, que busca protagonizar os eventos sobre infraestrutura. Apesar disso, ela tem feito discursos antes do presidente em eventos oficiais, e a marca "administração Biden-Harris" continua a ser usada em comunicações oficiais do governo.

Quando assumiu, em janeiro, a vice recebeu a missão de lidar com a crise migratória na fronteira com o México —tarefa que Biden teve quando foi vice de Barack Obama. Os aliados de Kamala, porém, reclamam que a missão lhe foi designada sem que ela tivesse autoridade para agir de forma incisiva.

Sendo filha de imigrantes, ela foi questionada por levar meses para ir pessoalmente até a fronteira e demonstrou irritação ao ser cobrada por isso. Também pareceu pouco confortável ao dizer, na Guatemala, que interessados em imigrar deveriam desistir da ideia.

Para os republicanos, que criticam duramente os democratas em questões relacionadas à imigração, isso gerou mais uma chance para atacar Kamala. E seus aliados reclamam que a Casa Branca tem feito pouco para responder aos ataques à vice-presidente, segundo a CNN.

Reportagens da emissora americana e dos sites Axios e Politico apontaram atritos entre as equipes de Biden e de sua companheira de chapa. Segundo os relatos, os dois grupos trazem falhas de comunicação desde a campanha eleitoral, e os subordinados de Kamala reclamam que falta espaço para que ela tenha algum protagonismo.

A democrata também teria se queixado de ter sido pouco consultada sobre a retirada das tropas americanas do Afeganistão —considerada a principal falha da gestão Biden. A operação, caótica, ficou marcada por atentados e cenas de afegãos tentando se agarrar a aviões em movimento para fugir do país, retomado pelo grupo fundamentalista islâmico Talibã.

Há também relatos de rusgas entre os próprios assessores de Kamala. Vários de seus funcionários foram substituídos, incluindo nomes que a ajudaram a sedimentar a carreira política. Nesta quinta (18), a diretora de comunicação da Vice-Presidência, Ashley Etienne, deixou o posto.

A Casa Branca nega conflitos. "A vice é não apenas uma parceira vital do presidente, mas uma líder de peso, que tem atuado em desafios-chave, do direito ao voto até o tratamento das causas profundas da migração e a expansão da banda larga", disse Jen Psaki, secretária de imprensa de Biden.

Symone Sanders, porta-voz de Kamala, afirmou que parte da mídia "está focada em fofocas, e não nos resultados que o presidente e a vice entregaram". Disse ainda que Kamala participou de dezenas de reuniões com congressistas e eventos nos estados para ajudar no avanço da proposta.

Segundo Joel Goldstein, pesquisador do papel dos vice-presidentes dos EUA e professor da Universidade de Saint Louis (Missouri), desavenças entre as equipes do presidente e do vice não são raras e se tornam mais frequentes em momentos de dificuldade, como a atual queda de popularidade. Ele pondera, no entanto, que muitos críticos de Kamala não entendem bem as funções de seu cargo e avalia que não há sentido nas cobranças de apoiadores para que ela tenha um amplo portfólio de realizações.

"O principal papel de um vice é aconselhar o presidente e ajudar a avançar a agenda do governo, mas isso tem de ser feito de modo privado. A vice não pode vir a público e dizer: 'o presidente estava perto de cometer um erro gigante, mas eu fiz ele mudar de ideia'", explica.

Goldstein vê ainda algum nível de sexismo nas críticas à vice-presidente. "Muitas das expectativas que se criaram sobre ela são artificiais, mas ela ainda pode ser bem-sucedida se a administração como um todo avançar", diz. "Ela já é uma figura histórica, por ser a primeira mulher no cargo, o que atrai mais atenção. Outros vices não despertavam tanto interesse."

Kamala enfrenta dificuldades adicionais por estar em uma situação pouco comum na Casa Branca: geralmente, o vice tem mais experiência política em Washington do que o presidente e serve como um guia ao lidar com o Congresso –outra missão em que Biden ajudava Obama. Mas o atual mandatário tem 48 anos de carreira na capital, enquanto sua parceira atua no nível federal há menos de cinco anos.

Nascida na Califórnia, Kamala, 57, foi procuradora-geral do estado de 2010 a 2017, na época em que Beau Biden, filho do presidente, tinha cargo similar em Delaware. Os dois viraram amigos, o que a aproximou da família —especialmente após a morte de Beau, em 2015. Esse foi um dos fatores que levaram o democrata a convidá-la para ser sua vice; outro, a tentativa atrair votos de mulheres, negros e latinos.

Kamala ainda tem boa pontuação nas pesquisas junto a esses recortes do eleitorado, mas a rejeição entre eleitores independentes é fator de preocupação. Segundo uma pesquisa do YouGov, 63% dos americanos não ligados a partidos a desaprovam.

"Os independentes mostraram seu desprazer com Biden na eleição [para o governo] da Virgínia. Se essa tendência continuar, poderá causar problemas maiores nas eleições de meio de mandato", diz David Paleologos, diretor do centro de pesquisas políticas da Universidade Suffolk, referindo-se à vitória de Glenn Youngkin no pleito estadual no início deste mês.

Em frentes importantes para o governo Biden, Kamala foi a enviada da Casa Branca em viagens internacionais. A vice foi ao Sudeste Asiático, em missão não declarada de reforçar a imagem dos EUA no continente ante a ascensão da China, e à França, onde se reuniu com o presidente Emmanuel Macron, selando o fim de uma crise diplomática —e recebeu críticas por supostamente "forçar" um sotaque francês.

Para tentar reverter a queda de popularidade, Kamala também tem feito viagens pelo país para promover o pacote de infraestrutura e o plano Build Back Better, de quase US$ 2 trilhões em investimentos sociais e ambientais, ainda em debate na Câmara.

Ao direcionar seu foco aos pacotes, no entanto, ela acaba deixando em segundo plano temas que defendeu ao longo da vida, como a ampliação do direito ao voto e a reforma do sistema judicial —o que pode afastá-la de sua base eleitoral.

Goldstein ressalta que o governo ainda tem mais três anos, e muita coisa pode acontecer. Ele conta que o republicano George Bush, vice de Ronald Reagan nos anos 1980, teve um começo difícil na função, mas depois conseguiu viabilizar uma candidatura e vencer a eleição presidencial de 1988. E que Dick Cheney, vice de George W. Bush nos anos 2000, teve grande poder no início do governo, mas depois perdeu força por ter dado maus conselhos, especialmente na área militar.

"Não há um caminho natural de ser vice e chegar à Presidência. Outros democratas não vão deixar suas ambições de lado e abrir caminho para ela", aponta. "Mas mesmo que um vice nunca chegue ao topo, ele ou ela terá estado muitas vezes na sala de decisão, com mais poder para fazer a diferença".

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