Descrição de chapéu The New York Times

Democracia enfrenta paradoxo de ser ameaçada por ideal de liberdade

Sistema democrático é uma disputa e não há garantias de que todas as partes jogarão conforme as regras

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Sean Illing

Autor de “O paradoxo da democracia: liberdade de expressão, mídia aberta e persuasão perigosa”, ainda sem edição brasileira

Zac Gershberg

Autor de “O paradoxo da democracia: liberdade de expressão, mídia aberta e persuasão perigosa”, ainda sem edição brasileira

The New York Times

Faz mais de um mês que Mar-a-Lago, a residência de Donald Trump, foi revistada pelo FBI. A reação a esse acontecimento por parte de atores políticos de todas os setores do espectro político tem sido previsível e é um exemplo, para melhor ou para pior, de como é a cara da democracia em ação.

O senador Lindsey Graham, da Carolina do Sul, alertou recentemente para o risco de haver "insurreições nas ruas" se Trump for levado à justiça por ter dado o tratamento incorreto a informações classificadas. Naturalmente, o ex-presidente se aferrou a essa narrativa e outras semelhantes e as amplificou na Truth Social, sua plataforma de mídia social semelhante ao Twitter.

O ex-presidente dos EUA Donald Trump faz discurso em comício na Pensilvânia - Brendan Smialowski - 2.nov.22/AFP

Enquanto isso, o presidente Biden, em discurso em que avisou que a Constituição, os valores americanos e o estado de direito estão sendo atacados, disse que Donald Trump e os republicanos do MAGA [sigla para Make America Great Again, slogan da campanha de Trump] representam um extremismo que ameaça os próprios alicerces de nossa República".

Podemos pensar que essas divergências sobre a revista de Mar-a-Lago e sobre o estado de nossa democracia constituem uma aberração, uma coisa trumpiana. Mas na realidade elas são o exemplo mais recente de algo que tem sido um elemento constante de nossa política, algo ao qual chamamos o paradoxo da democracia, cuja intensidade foi elevada pela internet.

Muito mais que um pacote de leis, normas e instituições, a democracia é uma cultura de comunicação aberta que garante às pessoas o direito de pensar, falar e agir e permite todos os meios de persuasão possíveis. Isso faz com que toda sociedade democrática seja singularmente vulnerável às consequências da comunicação. Podemos não gostar disso, mas alguma coisa como o 6 de janeiro de 2021 é sempre uma possibilidade, algo que tem o potencial de acontecer.

Devemos evitar a ingenuidade da fantasia liberal, que imagina que possamos impor barreiras confiáveis contra o discurso perigoso ou enganoso. De fato, existe todo um gênero de artigos e livros argumentando que as mídias sociais estão destruindo a democracia. Jonathan Haidt escreveu recentemente que, devido a mudanças nas plataformas online cerca de dez anos atrás, "as pessoas passaram a poder disseminar rumores e meias verdades mais facilmente e a agrupar-se mais facilmente em tribos homogêneas".

Ocorre que é precisamente essa a cara de uma cultura democrática complexa e desajeitada de se manejar. Dependendo do ambiente de comunicações, uma democracia pode fomentar normas confiáveis e pautadas pelo respeito ou pode descambar para a propaganda política aviltante, o cinismo generalizado e o sectarismo hostil.

E quando as comunicações descambam em propaganda política e sectarismo, uma democracia ou pode acabar com rapidez inacreditável, como ocorreu em Mianmar no ano passado, quando os militares derrubaram o governo democraticamente eleito, ou pode deteriorar mais gradativamente em caos e autoritarismo, como fez a Rússia sob Vladimir Putin.

Numa democracia, nada impede os eleitores de votar num autoritário ou votar por seu próprio fim (como fez a Assembleia ateniense na Grécia antiga). A história da democracia está cheia de demagogos que exploraram a abertura das culturas democráticas para induzir a população a voltar-se contra o próprio sistema do qual sua liberdade depende. Na França, em 1848, Napoleão Bonaparte aproveitou seu nome célebre para candidatar-se a presidente com a plataforma de restaurar a ordem, apenas para pôr fim à Segunda República com um autogolpe e converter-se em imperador quando seu mandato presidencial chegou ao fim.

Nossa democracia americana vem tropeçando em ciclos, da insatisfação à crise e ao progresso. Os cidadãos têm a oportunidade de expressar-se e decidir por conta própria, e os acontecimentos se desenrolam em todo o país. Pode ser um referendo que preserve o acesso ao aborto no Kansas, uma derrota de Liz Cheney numa primária no Wyoming, um movimento de protesto inspirado por um vídeo da execução extrajudicial de um homem negro em Minneapolis ou um fanático que ataca um escritório do FBI no Cincinnati depois de participar de fóruns online.

De acordo com uma pesquisa de opinião, apenas 21% dos republicanos pensam que as investigações sobre Trump devem continuar. Seja como for que eles chegaram a essa opinião, o simples fato de que a sustentam tem importância. Isso confere a conservadores não apenas um argumento político para subverter o estado de direito, como também o poder de criar sua própria realidade alternativa.

Desde a derrota de Trump em 2020, os republicanos têm abraçado a suposta "grande mentira" e se esforçado para reestruturar leis estaduais de modo a poder controlar eleições futuras. Poderíamos dizer que isso constitui um ataque deslavado à própria democracia, mas na realidade é um vislumbre de uma democracia destituída de restrições liberais.

É claro que seria muito melhor se os políticos democráticos cedessem às preferências da opinião pública mensurável e refletissem a vontade do povo. Seria melhor ainda se nossas instituições cívicas e legais nos garantissem proteção, vinculando o estado de direito à sociedade com responsabilização e de modo justo.

"Mas a verdade", como escreveu a estudiosa de comunicação política Zizi Papacharissi, "é que sempre vivemos em democracias imperfeitas, e ainda estamos vivendo. A democracia não é estática. Ela não é dada, não é garantida e não é estável."

Pessoas demais supõem que liberalismo e democracia sejam a mesma coisa. Elas creem que determinadas normas, como o respeito pelos direitos das minorias e o estado de direito, são elementos intrínsecos do sistema político, sendo que na realidade não passam de convenções que têm importância apenas na medida em que os cidadãos se importam com elas. Os últimos seis anos nos mostraram, no mínimo, que a democracia é uma disputa –e que não há resultados inevitáveis nem garantias de que todas as partes jogarão conforme as regras.

O paradoxo que está ao cerne desta discussão –a ideia de que a democracia contém os ingredientes de sua própria destruição— nos diz que a livre expressão e suas consequências às vezes perturbadoras são uma característica intrínseca, e não um bug. O que às vezes muda são formas de mídia novas que chegam e abrem espaço democrático para toda espécie de persuasão. Padrões de vieses, distorsões e propaganda acompanham cada evolução.

O cinema e o rádio produziram o ambiente artístico de uma cultura dinâmica na República de Weimar na década de 1920, mas na década seguinte a concentração desses meios de comunicação nas mãos dos nazistas sob a direção do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, abriu caminho para a guerra mundial e o genocídio. Ao mesmo tempo em que a televisão aproximou o público de seus líderes, a lógica dessa mídia premiou os artifícios de figuras políticas tão díspares quanto John F. Kennedy e Ronald Reagan. Cada vez que emergiram novas formas de mídia, as pessoas, inevitavelmente, as utilizaram para finalidades diferentes: para reforçar uma sociedade democrática florescente ou para destruí-la.

Há mais de um século o conhecimento vem sendo gerado e mediado por instituições de elite, especialmente grandes jornais e grandes redes nacionais de televisão, que ancoraram um discurso pautado pelas normas. Mas o dilúvio de mídia social no século 21 derrubou esse arranjo e vem sendo utilizado como ferramenta para enfraquecer nossa democracia por dentro. Isso é inevitável.

Para fortalecer a democracia liberal, líderes precisarão defender o estado de direito, mesmo que isso signifique correr o risco de reações políticas negativas da parte de trumpistas devotos. As audiências do comitê sobre o 6 de janeiro não foram em vão: elas criaram um registro forense de um esforço intencional para subverter uma transferência de poder pacífica. Além disso, elas podem ter gerado boa audiência na televisão, deixando mais cidadãos informados sobre o que aconteceu realmente. Mas isso não é o bastante. No final, a única maneira de fazer frente a uma conspiração sediciosa é processar os criminosos e derrotar nas urnas as pessoas que os apoiam.

Se isso significar indiciar Trump criminalmente se houver provas suficientes de que ele manteve documentos classificados em seu clube de praia e que mentiu sobre isso, ou se significar impedi-lo de candidatar-se a um cargo público, conforme manda a seção 3 da 14ª emenda constitucional, que seja.

A boa notícia é que nosso sistema mostrou ser resiliente: os esforços de Trump para subverter a eleição de 2020 foram repelidos em 6 de janeiro de 2021. É uma vitória da democracia americana.

Mas, como toda vitória democrática, essa foi provisória. Sempre que existir democracia, existirá demagogia. E a oportunidade de impor freios ao poder continua a ser apenas isso: uma oportunidade.

Se nossas instituições não se defenderem, talvez elas mereçam fracassar. E, se seus defensores não conseguirem persuadir pessoas suficientes para apoiá-las, é provável que isso aconteça.

Tradução de Clara Allain 

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