Ian Bremmer

Fundador e presidente do Eurasia Group, consultoria de risco político dos EUA, e colunista da revista Time.

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Democracia dos EUA tornou-se espetáculo lamentável que horroriza aliados

Denúncias contra Trump e atuação da Suprema Corte exacerbam agudas divisões políticas

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Trinta anos atrás, o império soviético caiu, em grande medida porque muitos em sua órbita consideravam a democracia e o Estado de Direito à moda ocidental superiores ao comunismo soviético.

A abertura da América e de suas instituições políticas fortes conquistaram a admiração de milhões de pessoas que queriam viver sob um sistema político em que a legitimidade de um líder dependesse de ele vencer eleições genuinamente competitivas, livres e justas.

Os EUA continuam a ser a potência mundial dominante. O país conta com recursos naturais fartos, sua economia continua dinâmica, seu sistema financeiro é forte, suas tecnologias definem padrões globais, sua cultura popular ainda inspira e suas Forças Armadas conseguem projetar poder em todas as regiões do mundo. De todas essas maneiras, as vantagens dos EUA hoje ainda são maiores do que eram em 1990.

Mulher com bandeiras dos Estados Unidos durante o feriado da Independência na capital do país, Washington
Mulher com bandeiras dos Estados Unidos durante o feriado da Independência na capital do país, Washington - Stefani Reynolds/AFP

Mas a democracia americana tornou-se um espetáculo lamentável, e os aliados dos EUA só podem ficar horrorizados. Não é simplesmente o fato de o presidente americano atual ser profundamente impopular.

Uma média das pesquisas de opinião recentes situa o índice de aprovação popular de Joe Biden em cerca de 39%, abaixo do nível de Donald Trump no mesmo ponto de sua Presidência. Tampouco é a surra que Biden pode prever nas eleições de meio de mandato, em novembro, graças ao aumento da inflação, da criminalidade e da turbulência na fronteira entre EUA e México.

O problema tampouco é um Congresso paralisado. Ainda há legislação avançando no Congresso. A aprovação bipartidária de uma lei (muito) modesta de reforma de armas e o progresso possível de um plano reduzido de gastar bilhões de dólares a mais com infraestrutura mostram que os legisladores não esgotaram todas as esperanças de progresso legislativo. Mas duas questões de grande peso estão exacerbando as divisões políticas agudas no país, enfraquecendo a integridade das instituições políticas americanas, provocando fúria e acendendo alertas sobre conflitos que estão por vir.

Primeiro, novas revelações estão vindo à tona sobre os dias finais de Trump como presidente e as ações de muitos de seus seguidores mais próximos. Um comitê da Câmara encarregado de investigar a insurreição em volta e dentro do prédio do Capitólio americano em 6 de janeiro de 2021 trouxe à tona evidências claras, fornecidas e em muitos casos corroboradas por figuras internas da administração Trump, de que o ex-presidente tentou montar um golpe de estado violento após a última eleição presidencial. O que ele não conseguiu realizar por meio de fraudes tentou alcançar pela força.

Mas ninguém em Washington tem confiança de que Trump ou seus facilitadores serão responsabilizados legalmente por essa insurreição evidente, e pesquisas atuais sugerem que Trump continua a ser o favorito para ganhar a indicação do Partido Republicano como seu candidato a presidente em 2024.

Como podem os americanos esperar que o resto do mundo leve sua democracia a sério quando 70% dos eleitores republicanos não aceitam Biden como presidente legitimamente eleito –e muitos dizem que estão preparados para apoiar um homem que tentou arquitetar um golpe transmitido ao vivo pela TV?

Há bons motivos para temer que a eleição de 2024 provoque violência letal nos EUA, e há americanos em grande número que vão rejeitar a legitimidade dela, independentemente de quem for o vencedor. Outra derrota de Trump ou de um candidato apoiado por ele levará a gritos ainda mais altos de fraude –e até a esforços de autoridades eleitorais estaduais aliadas a Trump para reverter o resultado do pleito.

Se Trump vencer, eleitores que o odeiam vão insistir que ele ganhou graças à manipulação do processo eleitoral e a mentiras repetidas contadas à população. Eleitores de ambos os lados acusarão os do outro lado de optar por viver numa realidade alternativa. Mesmo que os eleitores das primárias optem por rostos novos, eliminando tanto Trump quanto Biden, o problema da legitimidade das eleições vai persistir.

Mas enquanto os presidentes são eleitos para mandatos de apenas quatro anos, e seus críticos sempre podem depositar suas esperanças na próxima eleição, os juízes da Suprema Corte americana são nomeados e confirmados para cumprir mandatos vitalícios, e pelo menos meio século se passou desde que a Suprema Corte despertou paixões partidárias como a corte atual vem fazendo nas últimas semanas.

Após o vazamento antecipado controverso (e historicamente incomum) à imprensa de um rascunho de uma opinião judicial, no mês passado a Suprema Corte votou por inverter o precedente e derrubar a decisão sobre um processo de 50 anos atrás que garantiu às mulheres americanas o direito ao aborto.

Há 150 anos não vemos tantos americanos perderem um direito desta magnitude garantido pela Suprema Corte. Dois terços dos americanos se opõem à decisão. E, o que é mais importante, a decisão provocou um choque sísmico político que vai dividir opiniões em todo o país e no interior de cada um dos 50 estados americanos a respeito de uma das questões da vida nacional que é mais carregada de emoção.

Sondagens sugerem que a decisão da Suprema Corte enfraqueceu ainda mais a confiança na integridade da mais alta instância judicial do país, uma instituição que por muito tempo desfrutou de apoio público muito mais amplo que os presidentes ou o Congresso. Mesmo ali, a ameaça de violência é real.

Em junho, um californiano foi indiciado por tentar matar o juiz Brett Kavanaugh, da Suprema Corte. Promotores disseram que o homem estava revoltado com a possibilidade de o direito ao aborto ser negado. Ele próprio disse que temia que Kavanaugh afrouxasse as leis sobre armas.

Seja qual for o caso, a insurreição do 6 de Janeiro já mostrou claramente o risco de aqueles que questionam a legitimidade das instituições políticas do país recorrerem à violência.

O Departamento de Segurança Nacional alertou polícias locais e agências de inteligência para níveis inusitados de extremismo doméstico –de grupos tanto da direita quanto da esquerda—, e um estudo recente constatou que o apoio doméstico à "participação em uma revolução política, mesmo que suas finalidades sejam violentas", está em nível histórico alto entre os jovens americanos: quase 40%.

Com os dois grandes partidos hoje liderados por homens impopulares, e com tantas questões políticas incendiárias provocando tanta ira popular e contestação da legitimidade das instituições políticas dos EUA, o mundo tem razão em temer que a democracia americana, que Ronald Reagan descreveu certa vez como "uma cidade brilhando no alto de uma montanha", hoje esteja corroída por dentro.

Tradução de Clara Allain

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