Vladimir Putin reiterou em 30 de setembro, uma sexta-feira, sua ameaça literalmente terrível: usar armas nucleares para defender o território russo durante a atual Guerra da Ucrânia. Citou o precedente dos Estados Unidos no Japão, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Mas será que o dirigente russo não estaria blefando?
Pode ser que sim. Por via das dúvidas, no entanto, os EUA e seus aliados da Otan, a aliança militar ocidental, julgam verossímil que o maluco dirigente russo ultrapasse um limite que Moscou, nos tempos da União Soviética e nas mais de quatro décadas de Guerra Fria, não ousou atravessar.
O assunto é explorado com detalhes técnicos e políticos pelo jornal britânico The Guardian, em podcast do qual participaram os jornalistas e especialistas Andrew Roth e Michael Safi. A exemplo da Otan, eles levam a ameaça a sério e discorrem sobre as possíveis reações do Ocidente.
Vejamos um ponto inicial da discussão. Armas nucleares não foram feitas para serem utilizadas. Elas são tão incrivelmente destrutivas —podem acabar com a humanidade em alguns minutos— que existem apenas como instrumento de dissuasão. Ou seja, eu tenho mas não uso, porque eu sei que você tem e também não usará.
Têm hoje a bomba atômica um grupo muito reduzido de oito países —ou nove se já for o caso do Irã. Seus comandantes militares enxergam seus territórios como "santuários". Ninguém os invadiria sem, teoricamente, o risco de levar um troco nuclear.
As ameaças de Putin são uma ruptura dos bons hábitos da dissuasão. Em lugar de usar a bomba para reiterar a inviolabilidade de seu território, afirma que partiria ostensivamente para a ofensiva. E com armas nucleares. Isso não se faz.
Racionalmente, diz o Guardian, há três cenários para o disparo russo de uma bomba atômica. Pelo primeiro, seria respeitada a doutrina tradicional daquele país, que vê a ogiva como uma resposta à violação de seu "território existencial". A área física de Moscou, por exemplo.
O segundo cenário prevê uma resposta à inviolabilidade de um território que a Rússia afirma ser seu, mas cuja posse não é reconhecida pela comunidade internacional. É o caso da Crimeia, que Moscou anexou em 2014 e que a Ucrânia não reconhece como península russa.
Por fim, a terceira possibilidade estaria na inviolabilidade dos quatro territórios ucranianos com a população de língua russa cuja anexação Putin oficializou na mesma sexta-feira em que ameaçou usar armas nucleares. Mas essa possibilidade é por muitos motivos problemática.
E isso porque a Rússia não tem a posse integral dessas províncias, está perdendo território para tropas ucranianas e ainda perdeu a posse de cidades estrategicamente importantes dentro delas. Detalhe: Moscou não divulgou mapas. Ou seja, não possui nem para uso interno a prova de que exerce a soberania sobre determinado território.
Quanto à bomba em si. Andrew Roth assinala que, pela inexistência de precedentes, é difícil discorrer sobre os detalhes técnicos que precedem uma detonação. Mas é provável que o Estado-Maior russo cogite algo com poder destrutivo relativamente baixo, com os 15 quilotons (equivalente a mil toneladas de pólvora) que explodiram em Hiroshima e hoje podem destruir uma cidade pequena.
Essa bomba não passeia pelo campo de batalha na carroçaria de um caminhão. Está armazenada em silos dos quais seria retirada e transportada em trem especial até o local da explosão. E isso com relativa publicidade, para que os ocidentais saibam o que os espera e possam eventualmente negociar um desfecho diplomático (por exemplo, reconhecendo os direitos russos sobre territórios anexados, com a Ucrânia baixando suas armas e pondo fim ao conflito).
Mas esse roteiro também traz embutido o blefe de Putin. Ele saberia que não vai usar a bomba atômica e espera, apenas, que a Ucrânia e seus aliados ocidentais interrompam os combates e permitam que a Rússia disponha de uma saída honrosa. Ela não estaria mais ameaçada por uma derrota militar que o governo de Kiev acredita ser possível.
Em resumo, estamos diante de uma cartela de xadrez em que as pedras são movidas sem que se saiba o que está na cabeça do jogador russo. Os jogadores da Otan, ao contrário, têm seus movimentos mais transparentes em termos de intenção.
Recapitulando. A Otan não forneceu à Ucrânia armas ofensivas que possam ser usadas contra o território russo. Os ucranianos não têm mísseis de longo alcance. Isso os inferioriza nessa guerra. E é uma guerra impopular. A prova está nas reações profundamente negativas que Putin despertou aos seus planos de recrutar novos 300 mil soldados. A Rússia é uma ditadura, Putin não tem oposição. E pode usar a ameaça nuclear de modo irresponsável.
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