Mauro Vieira assume Itamaraty e fala em retrocesso sem precedentes sob Bolsonaro

Novo chanceler exalta Dilma Rousseff e reforça discurso de reconstrução da diplomacia; de saída, Carlos França defende atuação

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Brasília

O diplomata Mauro Vieira tomou posse como chanceler do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na noite desta segunda-feira (2), em cerimônia no Palácio do Itamaraty.

Em seu discurso, falou em "retrocesso sem precedentes" na área no último governo, em "reconstrução do patrimônio diplomático" e em reconduzir o Brasil "ao grande palco das relações internacionais". Ainda dirigiu um agradecimento à ex-presidente Dilma Rousseff, na gestão de quem também foi ministro das Relações Exteriores —até a abertura do processo de impeachment contra a petista.

Ao contrário da maior parte das cerimônias de transmissão de cargo desta segunda, o chanceler de Jair Bolsonaro (PL), Carlos França, esteve presente no evento no Itamaraty.

O novo chanceler, Mauro Vieira, discursa na cerimônia de transmissão de cargo no Itamaraty - Pedro Ladeira/Folhapress

Ele ouviu o sucessor tecer diversas críticas ao governo que chegou ao fim no último dia 31. Ao exaltar Celso Amorim, que foi chanceler de Lula nos outros mandatos do petista, disse que poderá contar com sua sabedoria para superar o que chamou de "tarefa monumental" de recuperar os danos causados pela gestão Bolsonaro.

"É reconfortante saber que poderei contar com a experiência, a colaboração e o olhar sempre construtivo de Celso Amorim, um dos maiores diplomatas da nossa história", afirmou.

O ex-chanceler, principal assessor de Lula na área de política externa, apadrinhou a indicação de Vieira para o terceiro mandato do petista —ele foi anunciado já na primeira leva de ministros confirmados, reforçando a importância que a diplomacia terá no novo governo.

Reforçando as críticas à gestão Bolsonaro, o diplomata destacou que o Brasil esteve alijado do cenário internacional nos últimos anos e apontou como justificativa disso uma visão "ideológica limitante". O primeiro chanceler do antigo governo, Ernesto Araújo, de fato chegou a afirmar que o Brasil deveria se orgulhar de ser um "pária internacional", ao fazer uma de suas muitas críticas ao sistema multilateral.

"Com bom senso e muito trabalho e dedicação, reconquistaremos nosso lugar. Essa é a real dimensão do enorme trabalho de reconstrução que nos aguarda, depois de um retrocesso sem precedentes na nossa política externa. Estamos prontos a encará-la de frente e com confiança", completou Vieira.

Mais cedo, o Diário Oficial confirmou o novo organograma da pasta, com a recriação das secretarias dedicadas à América Latina e ao Caribe, à África e ao Oriente Médio e a Clima, Energia e Meio Ambiente —elas haviam sido fundidas com outras na gestão anterior.

O novo ministro repetiu uma frase que Lula vem dizendo desde a confirmação de sua eleição —"o Brasil está de volta"— e que foi mencionada também por lideranças estrangeiras que estiveram com o petista numa série de encontros bilaterais nesta segunda.

Como ele e o presidente vêm destacando, Vieira reforçou que um dos objetivos do novo governo é reconstruir as pontes com os países latino-americanos, em particular em fóruns internacionais —caso da Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), citados no discurso.

"De todas as ausências do Brasil, o abandono da América Latina e do Caribe talvez seja a que nos ocasionou maiores prejuízos. O retorno do Brasil à sua própria região significará o engajamento e o diálogo com todas as forças políticas, para que possamos recuperar a capacidade de defender nossos interesses e contribuir para o desenvolvimento e a estabilidade regionais", disse. "Nossa ideologia na região será a ideologia da integração."

Em dezembro, quando anunciou as primeiras viagens internacionais que Lula fará como presidente, Vieira já tinha destacado, por exemplo, o restabelecimento das relações diplomáticas com a Venezuela.

Nesta segunda, ele ressaltou o papel do Mercosul e, em relação ao acordo do bloco com a União Europeia, disse que interessa ao Brasil um "tratado equilibrado", que ofereça "ganhos reais para a economia brasileira". Também criticou indiretamente europeus como Irlanda e França ao afirmar que questões ambientais não podem ser usadas como desculpa para o protecionismo.

O acordo UE-Mercosul foi fechado no começo de 2019, depois de quase duas décadas de negociação, mas teve sua implementação adiada —e até hoje ela está travada— em meio a, entre outros obstáculos, objeções do bloco europeu ao mau desempenho do Brasil na preservação da floresta amazônica sob Bolsonaro.

Carlos França, de saída do comando da pasta, cumprimenta o novo chanceler, Mauro Vieira, em cerimônia no Itamaraty - Pedro Ladeira/Folhapress

O novo chanceler também afirmou que o Brasil voltará a defender a solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino, depois de quatro anos de um alinhamento ferrenho a Israel promovido pelo agora ex-presidente.

Assim como gestões petistas anteriores, disse que o Brasil voltaria a pressionar pela reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas —colegiado no qual o país exerce hoje mandato rotativo— e de instituições financeiras internacionais.

Ainda sobre Dilma, Vieira não repetiu a narrativa petista de que a saída da ex-presidente do cargo configurou um golpe, ainda que tenha definido o impeachment de um "doloroso processo que fraturou o país e deixou marcas profundas".

"Queria reiterar a gratidão que devo à primeira mulher a ocupar a Presidência do nosso país, pela confiança que em mim depositou naquele período, lamentando que não tenhamos podido concluir, na política externa, as tarefas a que nos havíamos proposto", afirmou.

A fala do diplomata foi precedida por um discurso do agora ex-chanceler, Carlos França, presente à cerimônia. Ele defendeu sua gestão e evitou tratar do isolacionismo internacional adotado pelo último governo. Disse que, após uma conversa com Bolsonaro, foram estabelecidas três "urgências" e que elas foram enfrentadas pela pasta: a sanitária, ligada à pandemia de Covid; a econômica; e a climática.

França ressaltou o papel da diplomacia na compra de vacinas contra o coronavírus, ignorando críticas que recaíram sobre o ex-presidente por retardar a compra de imunizantes. Também desconsiderou os dados de aumento no desmatamento.

A presença do antecessor imediato de Vieira fez lembrar de quando ele mesmo deixou a pasta pela primeira vez, após o impeachment de Dilma. Na ocasião, ele foi duramente criticado por alas do PT por ter organizado e participado da cerimônia de posse de José Serra (PSDB), indicado por Michel Temer (MDB) —petistas defendiam e ainda defendem a tese de que Dilma foi vítima de um golpe liderado por seu antes vice.

As críticas foram reforçadas quando, na sequência, Vieira assumiu a representação do Brasil junto às Nações Unidas, em Nova York —um posto de destaque da carreira. Na gestão Bolsonaro, no entanto, o agora chanceler acabou, em certa medida, rebaixado, com a nomeação à embaixada na Croácia, missão de pouca relevância.

Diplomata de carreira, Vieira acumula ainda a experiência de ter comandado alguns dos principais postos do Brasil no exterior, como as representações na Argentina e nos EUA.

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