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Kenarik Boujikian, Lenio Streck e Marco Aurélio de Carvalho

Contra o combate judicial da política

Nova Lei de Improbidade Administrativa permitirá focar nos atos de comprovada má-fé

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Kenarik Boujikian

Ex-desembargadora do TJ-SP (1989-2019), é cofundadora da AJD (Associação Juízes para a Democracia) e da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia) e especialista em direitos humanos

Lenio Streck

Advogado, jurista e professor

Marco Aurélio de Carvalho

Advogado especializado em direito público e coordenador do grupo Prerrogativas

"A Justiça brasileira cometeu erros em prol do combate à corrupção." A afirmação é do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. "Nós temos um festival de abusos em nome do combate à corrupção", disse na live semanal do grupo Prerrogativas. Claro que a preocupação com a corrupção é de todos. Logo atrás —ou junto— da sonegação, do racismo e do machismo, a corrupção é um importante freio ao desenvolvimento da própria democracia.

O julgamento pelo STF das alterações trazidas pela lei 14.230 (Nova Lei de Improbidade Administrativa) deve seguir nesta quarta-feira (17). O que está em jogo é uma vetusta e exagerada leitura dos dispositivos da lei 8.429. É cada vez mais difícil encontrar gestores públicos que não tenham alguma investigação em curso. Quem concorre a um cargo público o faz para melhorar a vida em sociedade, não para praticar delitos. Política é atividade nobre.

Claro que abusos existem. Como reparou o ministro Gilmar Mendes, há abusos inclusive no Ministério Público e na magistratura, e para estes há a lei sobre abuso de autoridade (lei 13.869). Mas essa não é regra, pois o Brasil tem um corpo qualificado de juízes e promotores.

O que a nova lei 14.230 faz é abolir a tarja de improbidade para certas condutas meramente culposas (ou pelo descumprimento a princípios na leitura do autor da ação). Atos que causem algum prejuízo mensurável seguem sendo sancionáveis nas esferas civil e penal (das quais se pode extrair o ressarcimento em execução de julgado).

A lei endureceu os prazos, ao aumentar de 5 para 8 anos o limite para ajuizar ações (agora contados do fato), e fixou prazos para as etapas dos julgamentos. Desvios praticados dolosamente com prejuízos para a administração seguem sendo imprescritíveis. Vale dizer: quem pegou para si o que é de todos vai devolver os valores nem que seja no juízo final, sem riscos ou prejuízos decorrentes da aplicação retroativa da nova lei.

Existe o temor —infundado— de certos juízes e promotores de que processos já julgados do passado possam ser revistos com críticas à sua atuação, promovida com respeito integral às normas de então. Não devem ter esse receio. Não estamos aqui diante de um sistema de direito adquirido em que os juízes e os promotores possam estar perdendo algo. Juízes e promotores não perdem nem ganham disputas judiciais. As carreiras de Estado agem em nome da sociedade, não em nome próprio. A sociedade, por meio de seus representantes, considerava incorretas determinadas condutas. A mesma sociedade passa agora a entender que temos que focar nos atos de comprovada má-fé. Opção do legislador. Resta a advogados, juízes e promotores cumprir a nova lei, que está em vigor para a frente em todos os casos em andamento, e para trás no que puder corrigir exageros do passado.

Os números são implacáveis: quando sabemos que somente 9,5% dos casos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça são de improbidade tipicamente dolosa, e que 64% dos processos de improbidade resultam em alguma condenação, temos que cerca de 6% dos processados por improbidade realmente agiram com má intenção (contra 53% de condenações discutindo princípios). Esses dados fizeram com que o Congresso corrigisse os rumos da lei para focar no essencial. Um regime passado de "overcharging" (exagero na imputação) será agora abandonado. Ninguém nega que há e havia sobrevalorização de condutas por parte do Ministério Público. A mudança na lei mostra que temos de focar na celeridade e na prova real de desvios concretos. Localizar os valores desviados, bloquear e executar.

A lei supera esse panorama em que tudo se processa (mesmo sem prova) e no qual tudo se bloqueia (mesmo sem necessidade). São muitos os cidadãos que se afastam da máquina pública pelo temor de ter algum bloqueio ou condenação. Preocupa o fato de o STF caminhar para o controle da constitucionalidade da nova lei em um caso que sequer trata da nova lei.

A (nova) lei trouxe avanço. O Supremo prestigiará os bons quadros da administração se reforçar a evolução trazida pelo Congresso Nacional. E, é claro, dirá o óbvio: uma lei sancionadora retroage se for em benefício do réu.

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