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Marcio Sergio Christino

Um paradoxo brasileiro: consumo legal, oferta ilegal

Arranjo em curso no Supremo sobre porte de drogas é temerário

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Marcio Sergio Christino

Procurador de Justiça, atuou no Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado de São Paulo) e no Gecep (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial); é autor de “Laços de Sangue - A História do PCC”, entre outros

Estamos prestes a viver um momento único da história mundial: o Brasil será objeto de uma experiência sem precedentes. Se a descriminalização do porte de drogas avançar no Supremo Tribunal Federal (placar parcial está em 4 a 0), viveremos o momento em que o consumo será admitido sem que a venda do produto possa ser realizada. Mas não há compra sem venda. Se alguém comprou, é porque alguém vendeu; não há como legitimar o consumo sem que o fornecimento seja igualmente afetado.

Haverá a criação de uma demanda lícita sem que a oferta seja regulamentada, com consequências desastrosas. Será criada uma zona cinzenta de semilegalidade que não poderá ser ocupada por atores lícitos. Tal espaço, que nunca é vazio, será preenchido pelos únicos fornecedores capazes de satisfazer a demanda: as organizações criminosas.

O ministro Alexandre de Moraes participa da sessão plenária do STF que discutiu a descriminalização da maconha - Carlos Moura/SCO/STF - SCO/STF

Assim, a liberação do consumo de drogas, de quaisquer espécies, é o sonho do Primeiro Comando da Capital, do Comando Vermelho, da Família do Norte etc. —dado que serão os únicos fornecedores de uma demanda livre. Em todos os países do mundo onde ocorreu a liberação houve, também, a regulação da oferta, com a venda sendo realizada em estabelecimentos próprios. No Brasil, não: seremos os únicos a entregar a comercialização somente às organizações criminosas.

A lei da oferta e procura não se revoga. Assim, algumas consequências podem ser extraídas: a primeira é que seremos pioneiros no narcoturismo. Quer consumir drogas livremente? Venha para o Brasil. Todos poderão vir ao Brasil consumir sua maconha em paz e sem o controle imposto nos países de origem. Usar maconha será mais fácil que consumir cerveja. Se alguém beber uma lata de cerveja e for pego dirigindo poderá até ser preso. Mas e se estiver chapado? Nada, não há restrição legal: o que existe, apenas, é a menção à quantidade de álcool no sangue.

O SUS não tem recursos nem para atender a sua demanda normal. Terá condições de atender viciados? Quem paga a conta do tratamento? Adiante, vamos supor que um usuário se poste na frente da entrada de uma escola e faça uso abertamente da droga. Se alguém chamar a polícia, receberá a resposta de que nada há que possa ser feito. Como agirão aqueles que se sentem prejudicados? O usuário terá a polícia a protegê-lo? Teremos um foco de atrito social completamente desnecessário.

Façamos agora um desenho não político, mas técnico. Existe um mito de que a repressão deve focar o grande tráfico, não o pequeno traficante. Atualização: não existe pequeno traficante —isto acabou há tempos. O tráfico é dominado por empresas criminosas que têm o monopólio da venda e do espaço. Não há pequeno traficante, há apenas funcionários do tráfico. O traficante da ponta não compra a droga; recebe do fornecedor para revendê-la e repassa o arrecadado, retendo uma parte.

O traficante não é "dono" do ponto. O espaço é cedido pela empresa criminosa que, usualmente, mantém turnos de venda. Se um terceiro ousar vender em sua área, será cooptado ou morto. São esses "pontas" que praticam atentados. Uma vez presos, serão acolhidos como membros da organização e terão o apoio da facção, ficarão em alas do PCC e continuarão executando as ordens que lhe forem dadas. Não há líder sem seguidores. São soldados do tráfico, estão no front; são tão importantes quanto os generais que dão as ordens. A era de Pablo Escobar acabou. Alguém sabe apontar um traficante daquele quilate nos dias atuais? Não. Porque o sistema é outro.

O STF parece não ter se atentado para um fato: ao decidir o que é uso, decidirá também o que é tráfico por exclusão. Tal complexidade e entrelaçamento das condutas exigem que o exame seja legislativo, com a alternativa de se criar um regime jurídico unicamente jurisprudencial, o que a Constituição não prevê.

No próprio corpo do voto do ministro Alexandre de Moraes apontam-se critérios que poderiam configurar o tráfico mesmo que a quantidade seja pequena. Ou seja, voltamos à estaca zero, já que o art. 28, § 2º já estabelece oito critérios nesse sentido: a quantidade e a natureza da substância apreendida; o local e as condições da ação criminosa; as circunstâncias sociais e pessoais; a conduta e os antecedentes do agente. O que, com o devido respeito ao ministro, reflete o mesmo conteúdo do voto. Na dúvida, nada melhor que um plebiscito para que o Brasil decida realmente o que quer.

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