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Renato Stanziola Vieira

Pelo fim da matança

Ao que parece, população da Baixada Santista não tem a quem recorrer

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Renato Stanziola Vieira

Mestre em direito constitucional (PUC-SP) e mestre e doutor em direito processual penal (USP), é presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais)

Agentes da Polícia Militar do estado de São Paulo mataram na Baixada Santista, só no último mês, 39 pessoas, incluindo quem estava dentro de casa, quem gritava pela vida e até um portador de deficiência visual. Desde o início da chamada Operação Escudo, realizada no ano passado, o número de mortes somadas se aproxima de 70 pessoas, segundo os dados oficiais.

O nome disso não é a batizada Operação Verão —a que está em curso agora— nem um acúmulo de "morte decorrente de intervenção policial" como disfarces para maquiar a calculada ação praticada por homens fardados que, encorajados pelo governador paulista, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e seu secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, são renitentes em se deixar identificar por câmeras de segurança e inclusive, como se noticia, adulteram as cenas de crime em defesa de seus atos. O nome disso é matança, ou, Nilo Batista que nos perdoe, política criminal com derramamento de sangue.

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Policial militar quebra câmera de monitoramento em comunidade de Guarujá, um dos palcos da Operação Verão - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo

E é incrível que, na vigência formal do Estado civil desde 1985, o debate sobre a desmilitarização da polícia, pior do que não ter avançado, retrocedeu ao ponto de projetos que tratam de leis orgânicas das polícias Militar e Civil repristinarem, particularmente na primeira, a lógica da caserna e do combate ao inimigo, contrária ao controle das atividades pela sociedade civil. Isso sem falar no acúmulo de operações de "garantia da lei e da ordem" (GLO) e aumento de competências jurisdicionais que grassaram em tempos recentes, a nublar a distinção do funcionamento que deve ser residual e excepcional da própria Justiça Militar no Brasil. A militarização da polícia e da política, em vez de ser controlada, cresceu, e os frutos estão aí.

A vingança institucional disfarçada pelos uniformes de agentes do Estado não é privilégio da polícia paulista. Não é que a sociedade seja violenta a atrair reação proporcional do Estado; mas é a polícia ostensiva que, à frente de política de guerra nas ruas, responsável por índices de letalidade inacreditáveis, atemoriza a população.

Ainda assim, o fato de os eventos recentes se darem em São Paulo deveria abrir os olhos para o efeito deletério ainda pior do que a escandalosa atuação orientada ao extermínio de população jovem, preta e periférica. O estado de São Paulo é, sem contenção da arrogância, o propulsor dos debates políticos e econômicos do país.

A matança paulista se constitui em plano cujos efeitos ainda não se consegue prever. O secretário da Segurança, um deputado federal licenciado, no último dia 20 de fevereiro foi à Câmara dos Deputados para acompanhar o andamento do projeto de lei recém-votado no Senado Federal (PL 2.253/2022) que coloca uma pá de cal no sistema de progressão de penas no Brasil. Esse mesmo projeto dissemina a monitoração eletrônica sem preocupação orçamentária prévia e ressuscita a lógica anticientífica do exame criminológico —algo que, além de anacrônico, é inconstitucional.

Uma coisa tem tudo a ver com a outra. É coerente o deputado federal licenciado, com base eleitoral ligada à Rota, dedicar-se à pauta do superencarceramento e ordenar triunfante que uma "operação" se siga à primeira desde o ano de 2023 na Baixada Santista. Quem não se preocupa com a reintegração se envereda pela política de extermínio.

A Operação Verão é continuação da carnificina da Operação Escudo, com a agravante de que, no mesmo período de atuação, já foi responsável pelo dobro de assassinatos nas incursões policiais nas periferias de São Vicente, Santos, Cubatão, Praia Grande e Guarujá.

Os discursos e as ações de Derrite enaltecem a lógica do aniquilamento que notabiliza parte das forças de segurança pública do Brasil que ainda se rotulam —incensadas inclusive por chamadas jornalísticas— como "tropas de elite". Como se o rótulo cinematográfico fizesse sentido e suplantasse índices de abusos e assassinatos da população preta e pobre.

Denúncias de violações de direitos humanos (inclusive por órgãos internacionais que viram a situação da população e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao emitir o comunicado 177/2023) cometidas na dita "operação", que na verdade é uma só e se prolonga no tempo, não incomodam o secretário e seu chefe em sua lógica que oscila entre militarista, populista e assassina. Se não se cuidasse de vidas humanas, alguém poderia supor uma realidade paralela, tão olímpica é a indiferença aos alertas dos mais diferentes e isentos órgãos da sociedade civil.

Com o distanciamento da política pública de uso de câmeras corporais (enquanto o programa "Olho Vivo" foi estimulado, os números de mortes decorrentes de intervenção policial haviam caído cerca de 80%), investigações de fachada (há casos em que nem sequer se determinou perícia nos locais das execuções), pouca transparência no trato e disseminação de informações aos órgãos de controle externo (incluídos Ministério Público e ouvidorias), inexistência de protocolos para o uso de equipamentos especiais de atividade policial nas áreas em questão e falta de proteção a vítimas e testemunhas das matanças, a segurança pública de São Paulo se tornou um caso de terror.

Com o crescente empilhamento de corpos e indicativos de execuções sumárias, sem controle externo das atividades, é de se perguntar se não chegará a hora de intervenção federal diante do deliberado ataque aos direitos da pessoa humana (art. 34, VII, b, Constituição Federal). Ao que parece, no estado de São Paulo, a população da Baixada Santista não tem a quem recorrer.

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